domingo, 11 de setembro de 2011

14- O SÁTIRO

O SÁTIRO

Druidesa Anónimo
Aquela outra tarde era também de pura alegria. Eurídice estava celebrando com suas colegas de grupo sua despedida de soltera e sua saída da Fraternidad das Dríades, para casar ao modo grego. Ainda que sua mãe, a Alta Sacerdotisa da Deusa, por muito que a quisesse, não podia em absoluto se mostrar de acordo com aquela concessão aos rituais patriarcais dos Olímpicos e por isso tinha declinado sua presença, as colegas de Eurídice fizeram festa no bosque, comeram juntas sobre a erva e dançaram em coro como chiquillas.

Uma das garotas fez a broma de que pena que já não tivesse mais sátiros nos bosques, filhos de Pan, o Deus da Terra, como nos tempos mitológicos, para ser perseguidas por eles como o eram as ninfas.

-Eu serei o sátiro!- gritou uma das moças, a mais brincalhona agarrando um pau e pon-lho entre as pernas, como um falo enhiesto, enquanto fingia se lançar sobre outra de suas parceiras.
 -Não, não, eu também sou um sátiro! Afasta! –gritou ela, e esquivando-a, tomou outro galho, pôs-lhe por diante e correu, ameaçando à primeira por trás.
As garotas morriam de riso assistindo à pugna de ambos falsos sátiros, mas ao cabo, um deles lhe disse ao outro:
-Compadre! Olha aí todas essas ninfas!

E o outro respondeu: -A por elas!
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E todo o grupo dispersou por entre as árvores do bosque rindo a gargalhadas, gritando e jogando o divertido jogo de “A Caçada da Ninfa”.

Eurídice, desde seu esconderijo, viu vir correndo a uma das sátiras, que sujeitava seu pau com a mesma ferocidad marcial com que carregaria um lanceiro na batalha. Jogou-se atrás e deixou-a passar. Ouviu mais adiante um grito, outro da sátira e os correteos de ambas, se afastando alegremente.
De repente, sentiu uma presença a suas costas e voltou-se, mas não era a segunda sátira, como cria, senão um belo galã muito bem vestido, ao que conhecia quase desde a infância, um amigo.
Era o apicultor Aristeo, um jovem guapo, brilhante, de excelente berço e muito ingenioso, famoso por ter desenvolvido um método que permitia um eficaz cultivo doméstico das abejas em panais artificiais, a fim de lhes extrair sua néctar a vontade. Também se lhe conhecia como “o rei dos caçadores”, não só por seu maestría na caça de ciervos, gacelas e jabalíes pelos montes vizinhos, senão porque comentavam as garotas que era filho de Apolo e que, com sua apostura e galantería tinha conseguido os favores de várias mulheres de alta classe. Ninguém sabia se os chismorreos diziam a verdade, mas tal fama fazia que algumas outras aspirassem a lhe os conceder assim que se pusesse a tiro.
Ele a olhava a distância, entre a sombra do bosque, com um sorriso encantador, que realzaba ainda mais a beleza de seus olhos cor mel.
-Aristeu! -disse em um susurro devolvendo-lhe o sorriso e sinceramente contenta de ver-lhe- Que fazes aqui, louco? Como entras em um bosque sagrado sem pedir permissão? Podem-te despedaçar as ninfas -e avançou confiadamente para ele para receber sua saúdo.
-Precisava ver-te -respondeu ele, se inclinando, sem deixar de sorrir, com aquela voz tão bela como seu rosto-. Vamos-nos um pouco mais adentro do bosque para falar, Eurídice; se vêem-me tuas colegas vai armar-se um escândalo.

-Mas tem que ser agora? -respondeu Eurídice- Não podes vir pela tarde ao templo, com a gente que traz as oferendas?
-Isto não pode esperar, Eurídice, vamos agora, vamos -a tomou com ousadia pela mão, como quando eram meninos, e foram se apartando juntos de onde se ouviam as vozes de suas colegas e acercando ao rincão da cascata, rodeado de tenhas, onde Aristeu se deteve.

-Que beleza de lugar, Eurídice! Vêm –disse-, sobe a esta pedra um momento -e fazer colocar em um lugar no que a jovem parecia uma estátua sobre um pedestal, com a cascata se derramando por trás dela, ficando a um lado os riscos, e ao outro o bosque milenario.

Aristeu retrocedeu uns passos e fingiu que a pintava sobre o ar, com um pincel imaginario.
-Se eu fosse um artista te pintaria agora mesmo, Eurídice; como não o sou, só posso te dizer que meus olhos te estão vendo tão linda como se fosses a Deusa das Cachoeiras.
Ela ficou encantada e se inclinou para ele em uma divertida reverência cortesana.

-Lindo és tu, príncipe azul! Mel para tua boca! ...Mas para dizer-me isso me fizeste vir até aqui?
Ele lhe deu a mão para a ajudar a baixar da pedra com um passe gentil, que parecia de dança, mas não a soltou, senão que a reteve perto e lhe disse:
-Não, Eurídice, para o que vim é para te dizer que não posso deixar de pensar em ti.
Seguia com o mesmo sorriso em seu agraciado rosto, ele sim que parecia um deus, ela pensou que caçoava.
-Não é uma broma -adivinhou ele-. Quero-te. Estou louco por ti.
-Mas como? -ela estava muito halagada, ainda que não podia lho crer-... conhecemos-nos faz anos e jamais me disseste nada...
-Não me atrevi -respondeu ele-. Parecias-me demasiado boa para mim, Deusa das Cachoeiras. Olhava-te e olhava-te. E não deixei de pensar em ti nem de dia nem de noite durante todos esses anos, mas não me atrevia a te o dizer.
-Por que não?
-Porque quebraríase-me o coração se me recusasses, Eurídice, porque morreria ou me mataria depois.
“Quem te poderia recusar em uma Festa das Colmeias?” pensou ela; e acariciou-lhe o rosto, comovida. Porém, na  sua mente estava Orfeu.
-Mas eu estou comprometida agora! -disse-lhe- Estou a ponto de casar-me com Orfeu!
-Não podes -disse ele suavemente, olhando-a com segura doçura.
-Por que não posso? –respondeu ela, estranhada.
-Porque tu também me amas, Eurídice, porque somos os dois para os dois.

-Eu amo a Orfeu... -começou a dizer, mas ele a cortou.
-Olha-me um instante bem adentro, em silêncio, e depois te pergunta outra vez a quem tu amas.
Ela o fez, e o que encontrou nos olhos de Aristeu foi sinceiro amor, sincera amizade, sincera admiração e sinceiro e são desejo masculino por ela. Abraçou-o.

-Amigo, amigo, amigo querido! -disse com pena. Beixou-no ternamente na bochecha, manteve sua cabeça colada a seu ombro um momento, gozando de seu viril vibração, da sua nobreza. Depois apartou-se um pouco e seguiu tomada de sua mão e olhando-o sem saber como o consolar...Os homens eram tão frágeis!

-Quisesse poder desdobrar-me em dois para dar-te uma parte de mim e outra a Orfeu –disse com sua maior bondade-. Mas já não posso -sorriu tristemente, e fez um gesto com os ombros como para o animar a sorrir também-. Deixo a Fraternidade e caso ao modo grego. Monogamia. Nunca mais serei a Deusa das Cachoeiras.
-Dá-te toda a mim só, Eurídice -insistiu ele com uma confiança aplastante em si mesmo.
E avançou, lento, mas imparable, para seu rosto, com as pálpebras semicerrados, com aqueles lábios maravilhosos buscando sua boca para o beijo. Ela se sentiu desfallecer, ele a estava besando na boca e depois no pescoço, e seus braços a rodeavam e ela também pôs os braços ao redor do pescoço dele, sentindo que todo seu corpo começava a abrir-se-lhe, como uma flor a uma abeja... ainda que, no último momento, antes de deixar-se ir, voltou a sua mente a imagem mais amada de Orfeu.
-Mas não! -tentou soltar-se- Não! -disse com mais firmeza quando ele pretendeu seguir.
Ele não fez caso de seus súplicas, continuava beixando-a no pescoço com paixão e suas mãos tentavam excitarla.
Desprendeu-se, deu um passo atrás e disse muito séria:
-Já não pode ser! Tinhas que ter dito algo bastante antes! Nem sequer te apresentaste na Festa das Colmeias, quando podíamos escolher entre os homens-abelha! Agora já amo a outro e o amo totalmente!... Sinto muito, Aristeu.
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Ele a olhava com uma intensidade que queimava, mas em sua expressão não tinha a menor tristeza, tinha segurança, uma segurança indomável de que a ia conseguir. Sorriu.
Eurídice sentiu-se vacilar ante tanta segurança. Estava muito formoso e muito terrível sorrindo assim. Sentiu seu poder sobre ela, teve medo.
-Vou embora -disse-. Adeus, amigo...
Mas ele avançou e a atraiu para si com macieza, como achando que ela caçoava, a abraçou sem beixa-la e esteve muito quieto, e a ela entrou-lhe a ternura e o abraçou também, pensando que tinha sido todo muito lindo. Tomara que pudessem se despedir como bons amigos que, em verdade, amavan-se.
Mas ele já tentava de novo fasciná-la com sua mirada melosa, já lhe buscava a boca outra vez e ela decidiu que isso tinha que terminar.
-Para, Aristeu! -disse com força-. Vou embora, agora sim que estou indo.
Não a deixou se desprender, insistiu, insistiu, e desta vez com determinação avasalhadora. Sentiu-se forçada, violentada, quis desprender-se e retroceder, mas mantinha-a presa.
Notou a virilidad dele apertando seu ventre baixo a roupa e não era algo agradável nem excitante, senão agressivo, duro, obsceno, indigno de ser suportado por uma Dríade. Fechou-se tanto como antes se tinha aberto. Conminou, suplicou, tentou falar com ele, com o amigo gentil, com o cabalheiro, com o homem.
Mas ele já não escutava, não servia de nada falar, nem gritar, nem se agitar, nem tentar lhe arranhar nem morder-lhe. Já não havia ali amigo, nem cabalheiro, nem homem, só um impulso cego buscando sua própria culminação, uma vontade inconsciente de penetrar e possuir, um animal em zío lançado adiante, a tomba aberta.
Eurídice viu-se de repente encurralada contra uma árvore, apertada pelo ventre daquele homem convertido em uma besta, que a agarrava fortemente com uma mão, enquanto tentava arrancar-lhe as roupas com a outra... mas não era aquela uma árvore qualquer, era Sua Árvore, a faia milenar com cujo Deva tanto tinha-se comunicado, a grande árvore que tanta energia de amor tinha recebido dela e que tanto amor e força podia devolver.
Sentiu-se, primeiro, protegida, depois, poderosa. De um potente codazo em plena cara xogou para atrás a Aristeu. Imediatamente arrojou-se-lhe em cima, dando-lhe um brutal joelhaço na entreperna que lhe fez cair cabeça abaixo, revolvéndose de dor.
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Quando o viu no chão largou-lhe outra patada com toda sua força no mesmo lugar, que doeu-lhe tanto que cortou por completo sua vontade e com ela, o feitiço que a dominava. Na segunda queda Aristeu ficou inconsciente.

Eurídice deu em correr, ainda que, a certa distância, voltou-se e ficou fitando--o em pé, disposta a seguir correndo. Mas o homem estava bem imóvel. Perguntou-se se não o teria matado. Agarrou uma pedra, levantou-a, amenaçante, foi-se-lhe aproximando com total cautela, acercou-a a sua cabeça, disposta a bater-lhe se reagia e inclinou-se sobre seu peito. Ouviu seu coração, respirava.

Ficou mais tranqüila. Baixou a pedra sem descuidar a guarda; apartou da cara de seu agressor com a outra mão os cabelos que a cobriam e ficou olhando um momento o rosto de Aristeo, que seguia sendo belo e sensual. Seu lábio inferior estava amoratado por seu primeiro codazo e soltava um fiinho de sangue. Limpou-o com saliva e acariciou-o com pena.
Depois pôs-se em pé, sempre com a pedra a ponto, foi para sua árvore e o tocou um momento, agradecida. Quando se afastou bastante soltou por fim a pedra, arranjou um pouco suas roupas e dirigiu-se a bom passo para onde pensava que estariam suas parceiras; ainda que o que mais estava desejando, em realidade, era se meter núa baixo a água da cachoeira, se lavar e se purificar totalmente de todas as forças escuras que tinham ficado prendidas nela.


Quando regressou ao pouco, com todas as Dríades armadas de instrumentos de labranza, machados e sensatas, para o atar e lhe dar seu merecido, Aristeu tinha desaparecido e por muita busca que fizeram, já não o encontraram.
-Iremos a por ele a sua casa!- gritou uma.

-Se escapou-se, a queimaremos, para que aprenda! -gritou outra.

-Queimaremos também seus colmenas de abejas, isso será o que mais lhe vai doer! -propôs uma terça, furibunda.

Mas Eurídice, que já se tinha tranqüilizado, conteve e acalmó a fúria de seu grupo e, com muitas razões, lhes pediu que não fizessem nada antes do casamento nem lho contassem a ninguém e muito menos a Orfeu. Já que contar-lho, disse, só ia provocar que se visse na obrigação de desafiar a Aristeu e que seu imediato casamento se tivesse que adiar ou se amargurasse por um lance de sangue no que seu amado pudesse correr perigo.
Após muita discussão, conseguiu que se avinieran a um pacto de silêncio; mas as mais exaltadas disseram que a segredo agravio, secreta vingança, e que, quando tivessem passado duas ou três semanas após o casamento, não ia ficar senão fumaça da famosa granja apícola do descarado violador que se tinha atrevido a profanar um bosque de Sacerdotisas-Ninfas.
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