domingo, 11 de setembro de 2011

33- A ILHA DE CÓRSICA

A ILHA DE CÓRSICA     

-“Kalista!” (A Formosa)- tinha gritado o timonel assim que a vió assomar no horizonte. Era a ilha mais alta do Mediterráneo, prolongação dos Alpes, de uma luminosa e agreste beleza natural incomparável. Quando se foram acercando, se pôde ver que estava arrematada por altos picachos orlados de neves resplandecientes, exhuberantes em bosques, riscos esculpidos pelos ventos, desfiladeros, rios, rojizos cabos, alcantilados calizos, selvagens e íntimas calas, golfos profundos de águas verdiazules e transparentes, com praias de areia dourada, sombrios sotos... tão atraente o lugar que o comandante mandou desembarcar a todo mundo, excepto aos guardiães designados por turnos para as naves, pôs sentinelas também na praia e, após organizar a reposicião de água e a busca de mariscos e caça, anunciou a todos que descansariam um par de dias naquele paraíso, ordem que foi recebida com alegria geral." 

-Em algum dia gostaria de retirar-me a viver singelamente em um lugar como este –comentava Arron mais tarde, enquanto desfrutavam de sabrosas langostas cozinhadas em molho de ervas aromáticas frescas, sal, cebolla picada, azeite e vinho-, longe do amontonamiento da civilização e de seus luxos artificiais, por milhares de bandidos cobiçados.
-Todavía aqui poderiam aparecer os fenicios ou os aqueus, ou os mesmos nativos, a aguar-te a festa -comentou jocosamente o timonel, sentado em frente a ele enquanto bebia-. Só descansam para valer os mortos.
Orfeu pensou de repente se isso seria verdadeiro e se Eurídice não estaria naquele momento em um paraíso sem inquietudes, enquanto ele percorria médio mundo para tratar de devolver à preocupação, ao risco e à zozobra próprios dos viventes.
Mas suas reflexões foram interrompidas pela chegada do primeiro grupo de caçadores, que traziam um par de jabalíes atingidos por suas setas. O chefe do grupo comunicou a Arron que também tinham encontrado um santuário cavernícola.


O comandante quis que lhes guiassem em seguida até lá. Tratava-se de uma gruta de pouca profundidade junto a uma umbrosa cascata, rodeada de uma zona de pequenos dólmenes, estelas, menhires e todo tipo de restos de oferendas, provavelmente um lugar de enterro, ademais. Em seu interior tinha uma representação em pedra da Grande Mãe neolítica que devia ter milhares de anos.

 

]Era um tosco torso feminino de forma fálica e com a cabeça como um glande, todo isso inscrito em um rombo ocre rojizo, cor de fertilidad e reSulreccião. Manifestava a crença dos antigos no caráter hermafrodita da Deusa, que se autofecundaba para criar a vida, sem necessidade de que existisse um complemento masculino para colaborar a seu fertilidad. Tinha um colar formado por signos em zig-zag e borboletas, para realzar sua hierarquia e seu caráter de eterna regeneracião. Pelo mesmo, sua parte superior estava arrematada pela serpente da sabedoria. Tinha outros signos astronómicos que aludiam às diferentes personalidades e funções da Deusa protetora da vida, a morte e o renacimiento. Em seu ventre estava gravado uma árvore de amplos ramos e frondosa copa que recordava a um feto, cujo tronco se convertia em um óvalo com um ponto no centro do círculo, que simbolizava a Vulva Universal, e o oco Mundo Subterrâneo que dá lugar a todas as manifestações da vida.
Arron e seus acompanhantes recolheram flores e lhas ofrendaron à Deusa com o maior respeito. Depois ordenou ao chefe dos caçadores que se trouxessem até ali as langostas, os dois jabalíes e o resto da caça e pesca que se tivesse conseguido, para os cozinhar no ara que tinha adiante da gruta. Queimaram completamente em sacrifício a porção do muslo, bem engrasada e envolvida nas tripas, e fizeram libaciones em honra da Mãe de todos os Deuses, enquanto Orfeu lhe dedicava um hino com sua lira. O restante foi distribuído entre os tripulantes, que se congratularon de estar comendo em família, rodeados de uma acolhedora vegetação e do aroma da terra fértil, na venerada companhia do Feminino Universal.
Antes de ir embora, enterraram todos seus residuos, para deixar limpo o lugar, como era obrigado, e dispuseram sobre o solo, na boca da gruta, alguns emblemas tirsenos e focenses, um plato com comida, uma crátera de vinho tinto e dois copos decorativos de verdadeiro luxo como oferenda, não só para manter propícia à divinidad, senão também para que os nativos soubessem que tinham desfrutado de sua ilha, de suas peças de caça e de seu santuário como agradecidos hóspedes da Mãe de todos, e não como piratas.
Ao sair deram-se conta de que vários dos menhires circundantes eram, em realidade, outras representações da Deusa em seu aspecto fálico, ainda que as chuvas de vários séculos tinham desgastado bastante seus caderas e seios, e seu rosto inscrito no glande. As extremidades acabavam em pontas curvadas para acima ou para abaixo, para realzar mais ainda seu caráter fecundador. Outro tinha sexo feminino por diante e masculino por atrás.
-A Divinidad, representada pelos ancestrais baixo esta forma simples, andrógina e estilizada, até ruda e primária… os atributos essencialmente físicos de uma Mãe-Pai arquetípico, abstracto, expressa bastante melhor, para mim, aquilo ao que é impossível dar uma imagem que não seja um puro símbolo. Prefiro-o à mais perfeitamente naturalista das estátuas de mármol em forma de homem ou de mulher, que sempre nos levam à ilusão idolátrica de querer seguir adorando ao Mistério Incognoscible e Ilimitado, dentro da forma e medida limitada do conhecido por nós, que é nossa pequena dimensão humana -comentou o comandante Arron-…agora bem, postos a aceitar um modelo de símbolo a nossa imagem e semelhança, um ídolo naturalista, a verdade é que a forma humana de uma deusa contém perfeitamente a um deus dentro de si enquanto à imagem de um deus sempre lhe está faltando algo. Isso se deve, creio eu, a essa maldita necessidade ou ânsia sexual que temos sempre, compulsião animal que lhe resta algo de sua soberania a Zeus e aos varões em general, sempre buscando afora, sempre carentes de algo, em frente à perfeita majestade serena da Deusa, acolhedora, nutricia, abundante e completa, um centro que atrai tudo para ela, por muito sozinha que pareça estar... ainda que pode que isto que estou dizendo não seja, talvez, senão uma apreciação subjetiva minha , induzida por milênios de cultura matriarcal.

Orfeu sempre surpreendia-se por aquelas deduções espontáneas, intelectuais e agudamente filosóficas, próprias do caráter dos jonios, tão próprias como a solta alegria com que comiam, bebiam, dançavam, caçoavam, trabalhavam, comerciaban, brigavam e amavam. Tão cerca da Deusa e de Donisio como de Zeus e Apolo. Decididamente, eram o tipo de grego que mais gostava.


Aquela noite recordou com nostalgia sua primeira visão apaixonada de Eurídice (parecia-lhe a seu coração que muitíssimos anos tinham decorrido desde então). Ela estava sentada junto ao olhador que tinha na parte pública do Templo das Dríades, desfrutando concentradamente do entardecer. Tinha-a sentido naquele momento tão completa e perfeita em seu próprio ser, tão real sua vivência do presente, tão livre de necessidade ou de carência alguma, tão plena, também, de possibilidades, ao rodear com sua beleza externa e sagrada uma matriz interna capaz de gerar vida universal, que nem se atreveu a se acercar. E tinha-se limitado a ficar contemplando desde as sombras do jardim àquela sacerdotisa desconhecida e compartilhando sua delicioso silêncio e a vibrante plenitude do mistério de sua alma a uma verdadeira distância.
Arron estava no verdadeiro: as mulheres davam a impressão de estar sempre bem ligadas consigo mesmas, com a divinidad, com o mundo e com tudo. Tal como quando ele se ligava e completava quando tocava a lira, mas sem ter necessidade de nenhuma lira. Os homens precisavam uma musa para inspirar-se e instrumentos materiais criar obras. Elas eram a musa e a própria inspiração, elas eram a criação natural pura em forma humana e a mais perfeita obra criada pela Deusa, a imagem e semelhança de Si Mesma.
-“...Ainda que pode que isto que estou sentindo não seja senão uma apreciação subjetiva, induzida por minha melancólica carência de amor e por milênios de cultura matriarcal”- pensou, emulando ao comandante jonio.

Depois dos dois dias de delicioso relax, as três naves zarparon de Córcega, contornearon o Promontório Sagrado ao norte da ilha e cruzaram de novo o amplo mar com bom vento, até avistar as cimeiras azuladas dos Alpes Marítimos, que coroavam o litoral sul do continente europeu, ao oeste do Golfo Ligur.



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