domingo, 11 de setembro de 2011

29- O VINHO

O VINHO   

 Arron fez o gesto de quem empina o codo para beber, guinhó o olho para Orfeu e disse: 

-Se algum deus tem triunfado no mundo inteiro, colega, esse é Dioniísio: durante muitos anos eu me dediquei a transportar ánforas de vinho cretense pelo mar e essa era uma mercadoria que em nenhuma parte deixou de ser devidamente apreciada e que me serviu para me ganhar a amizade de tribos inteiras de bárbaros.
As uvas têm uma longa história: Em Oriente diz-se que vieram daquele poderoso e culto reino da antiguedad que se afundou baixo um diluvio ou um maremoto. Parece que os marinhos sobreviventes conseguiram desembarcar em uma montanha do Cáucaso, igual que nossos Decaulião e Pirra no Parnaso, e o primeiro que fizeram assim que puderam tocar terra firme foi plantar uma vinha, cosechar, fazer vinho e o beber, para recuperar a alegria, depois de ter sido testemunhas da morte de todo mundo que conheciam. Os vates gregos, por sua vez, dizem que Decaulião era irmão de Ariadna de Creta, filha de Minos, quem, quando Teseo de Atenas a abandonou em Naxos, se casou com Dioniísio, quem levou a toda parte a cultura do vinho.
O caso é que aos poucos anos da última grande catástrofe, as uvas já cresciam selvagens na costa sul do Mar Negro; 

através da Ásia Menor e Palestina, estendeu-se seu cultivo até Egito e todo o norte de Africa, desde ali passou a Creta, onde a hermandad dos homens-cabra, os Filhos de Pan, se encarregava do elaborar, por isso Baco sempre se representa rodeado de sátiros. Os cretenses levaram-no, por oriente, até Persia e a Índia... e por ocidente, as naves jonias (e eu tive a honra de ser mensageiro de Dioniísio nessa missão), até o remoto litoral dos Oestrymnios do Norte, onde deslocou à loira cerveja.-

-Não conseguiu a deslocar naTrácia... –contestou Orfeu sorrindo- Ali, como em Frigia, as orgías dionisíacas das ménades continuam se fazendo com cerveja elaborada pela hermandad dos centauros. Por verdadeiro que o centauro Quirão de Ptía conhecia um preparado alcohólico muito antigo, a base de cerveja de pinheiro misturada com hera e endulzada com aguamiel, do que se diz que é o néctar que tomam os deuses em suas festas do Olimpo.
-Não me fio nada dessas receitas demasiado antigas- disse Arron-, desde que me inteirei de que o néctar de Zeus não passava de ser uma elementar aguamiel tostada e que a famosa Ambrosía, o alimento do que se diz que dava imortalidade aos deuses, não era mais que umas gachas de cebada, azeite e frutas troceadas... Claro que isso ocorria em uma época na que os homens só subsistían de asfódelos, malvas e bellotas...

Orfeu sabia, por Quirão e por Eleusis, que todos aqueles componentes da Ambrosía que o comandante citava compunham, com suas letras iniciais juntas, a palavra “hongo” em grego, e que a ingestião ritual de hongos enteógenos era a chave que as antigas chamanas matriarcais e os homens-centauros do monte Pelião tinham descoberto, nos bosques ou entre o estiércol dos cavalos, para conhecer aos deuses. …Ainda que era algo sobre o que tinha jurado guardar segredo inicial total.
Arron ia seguir falando, mas o timonel gritou desde seu posto, para todos, que já se começava a divisar a mole rugidora e os humeantes exabruptos do vulcão Etna de Sicília no horizonte ocidental.


 

 

Era um coloso altísimo, o vulcão mais elevado e ativo da Europa, diziam, com sua base estendendo-se sobre toda a metade nordeste da ilha e com a cimeira coberta de neves perpétuas, da que saía fumaça continuamente, às vezes com macieza, às vezes acompanhado de pavorosas explosões
-Está em erupção agora mesmo? -perguntou Orfeu.
-Não, não, este é seu estado normal desde que os homens de nossa raça o recordam, tranqüilo mas bastante vivo –respondeu Arron-, a última erupção foi faz duzentos anos e isso sim que dava medo, segundo se conta. No entanto os habitantes de um povo que há a seus pés, seguem aí desde sempre e não se vão. A primeira vez que eu passei por aqui quase anochecía e estava arrojando tais emissões de colada de lava pelos quatro cráteres de sua cume, que nos voltámos, aterrorizados, porque parecia que até o mar estava ardendo.
Mas depois soubemos que isso só indica que os fantasmas dos cíclopes que Apolo matou para vingar a seu filho Asclepio seguem realizando sua atividade habitual aí dentro. Nada do que alarmarse, ainda que os sábios dizem que se voltam a cada ano mais violentos... quem sabe se em algum dia o pavoroso gigante Tifón, que tentou vingar a derrota dos titanes, e ao que também Zeus mesmo venceu e encerrou aí abaixo, se escapará de sua prisão e voltará este mundo do revés, como dizem que acontece a cada venticinco mil anos.
...Daquele lado das saias do Etna há um precipício, o alcantilado de Cíane, têm-no como sagrado, já que se diz que o abriu Hades quando raptó à donzela Core, filha da deusa Démeter, para baixar ao Mundo Inferior em sua carroça de negros corceles, onde agora reina junto a ele com o nome de Perséfone.-
-Se poderá descer aos Infernos por esse alcantilado, comandante? –perguntou Orfeu com grande interesse.

-Essa grieta está cegada por lava-a das últimas erupções; há algumas mais em outros pontos do vulcão que ainda estão abertas, mas não se pode introduzir ninguém sem se asfixiar ou se queimar imediatamente... Em qualquer caso, estas coisas tão especiais que Sicília tem fizeram que ninguém, senão os fenicios, se atrevesse a colonizarla durante muito tempo.
-Então está vazia de gregos?
-Não, não, em um dia um tal Teocles foi arrojado aí por uma tormenta e não encontrou cíclopes enormes de um sozinho olho, senão pastores muito pacíficos que viviam em um lugar muito fértil. De modo que voltou a Grécia, trouxe gente civilizada e fundou Naxos. Se todo vai bem, esta noite dormiremos nesse porto.

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