domingo, 11 de setembro de 2011

35- SAUDADES DE EURÍDICE

SAUDADES DE EURÍDICE      

Quando todos os remeros já estavam descansando, Orfeu se deleitou no espetáculo da saída da lua cheia acompanhada pela algarabía de ranas, sapos, cigarras e aves limícolas da marisma, entre os que destacavam os piídos lastimeros dos ostreros e o po-po das garzas, misturados com o chap-chap das ondas sobre a ensenada, mais o hu-hú de algum búho real mais próximo. E ficou evocando outra lua como aquela, a da última noite passada com Eurídice antes de sua partida ao encontro com os Argonautas.

Bastante antes do amanhecer, Orfeu tinha-se levantado do leito que essa noite secretamente compartilhavam e saiu ao exterior da cabanha próxima ao bosque das Ninfas, alugada com a maior discrecião a um pastor para seu encontro com Eurídice, quem teve que se deslizar por uma sensata desde a janela de seu quarto no Monasterio das Dríades, para poder estar com ele.
A lua cheia presidia o céu majestosamente parecendo marcar-lhe o rumo para aquele país de magia, a caucasiana Cólquide, a onde em breve iria, em busca da aventura e pela aventura mesma, sem que se importasse, em realidade, nenhuma das razões que lhe tinha dado a seu pai para se incorporar a ela. Ele era um jovem apasionado que precisava sair do poderoso influjo feminino de sua mãe, a Alta Musa de Apolo, e que, por outra parte, se aburría a morrer no mundo formal e oficial do corte de seu pai . O que precisava era uma empresa guerreira ou pirata na que forjar seu próprio tempere e para isso preferia a companhia dos agressivos e individualistas jovens gregos à dos mercantilistas troyanos ou à de sua própria gente trácia, que sempre o trataria como tratavam à família real e nunca como a um igual.
Veio-lhe muita vontade de converter em um hino épico toda a voluntariamente contida e sublimada excitação viril que sentia dentro, na que ainda vibraba, exaltado, o calor e o prazer do corpo de seu amante, mas não tinha sua lira a mão e se contentou com a pulsar imaginariamente.
Desejava, com toda intensidade ,se ver a si mesmo despregando suas potencialidades em um ambiente diferente ao conhecido, sendo um mais, sem outras hierarquias que as que estabelecem o valor ou a inteligência da cada homem dentro de um grupo; desejava conhecer-se a si mesmo em liberdade, sem as corazas protetoras de sua rango e sua linhagem, sem o amor protetor e ao mesmo tempo posesivo dos seus em torno; sem o amor, sequer, de Eurídice, a única mulher que realmente lhe tinha impressionado em sua vida após sua mãe.
Ao cabo de um pouco regressou à cabanha. Quando abriu a porta, a luz da lua entrou e modeló o corpo nu de Eurídice dormida, tal como se fosse uma estátua de mármol. Estava tão bela, suas costas e suas caderas sobre as sábanas, seus longos cabelos derramando-se ao redor, ondulados e brilhantes; viam-se tão espléndidos os volumes de seu corpo, que Orfeu deixou a porta aberta e a esteve contemplando, primeiro de frente e depois pela cada um de ambos lados da cama, a fim de gozar de várias mudanças de perpectiva visual.
Desfrutou caladamente da contemplação de suas estilizadas curvas, do bem torneados membros, de suas femininas concavidades e convexidades, dos incitantes pliegues de sua pele, entrecerradas portas para seu interior que faziam palpitar de novo seu sexo com sua mera visão e suas sugestões de delícias e de fusão. Inclinou-se para ela enchendo de seu perfume, buscou em vão, como um cego animal instintivo, as zonas sombrias da hembra em busca de acres aromas lunares, de umidades invitadoras; a besó, acariciou-a, mas só obteve um longínquo sobresalto molesto de seu durmiente amante.
Se enfrió então um tanto e separou-se dela porque lhe dava a impressão de que Eurídice não estava naquele corpo yacente, que, ainda que atraente, deixava de ser deleitoso ao tacto sem sua atenção acorda dentro. Voltou a tocá-lo e confirmou o afastamento de sua amada,

“Sim, é uma atenção o que somos”-pensou-, “sem a atenção, sem a consciência atenta, estas formas não são senão uma bela estátua vazia esperando a sua dona... Eurídice... onde está agora tua alma que aqui não está?”.
Sentou-se a contemplar a aletargada estátua de carne cálida, pensando o que era realmente Eurídice, o que era Eurídice para ele e o que seguia sendo quando não se encontrava em seu corpo como naquele momento, quando aquela atrayente arquitectura sensual se convertia em algo inerte, vazia de sua presença consciente.
Fechou os olhos e pensou nela primeiro como Eurídice indivíduo, como aquele sábio, espiritual, doce, alegre, amoroso e bom indivíduo que era seu amigo da alma, uma pessoa totalmente leal e afín a ele, alguém em quem se podia confiar a vida ou a morte. Uma pessoa sincera, alguém que seguiria sendo um amigo valiosísimo ainda que não existisse nem sexualidad compartilhada nem nenhuma outra taxa de juro material entre eles. E deu graças à Vida por aquela perfeita amizade.

Pensou depois nela como mulher, abrindo de novo os olhos à beleza de seu corpo; como Eurídice mulher, a formosa mulher, tão mulher e tão senhora, uma independente Dríade da Deusa, quase uma Amazona inalcanzable, que lhe tinha escolhido a ele, entre tantos machos completos, guerreiros viriles, diestros campeões, provedores seguros de prazer, de alimento, de bens conquistados e de segurança. A ele, que nem precisava se barbear, a ele cujo vigor muscular pouco se diferenciaba do dela, a ele, de quem faziam chistes os guerreiros a suas costas no acampamento após a cada exercício. A ele, ante quem seu pai se desesperava pensando que “isso” era o herdeiro legítimo ao que a coroa de Trácia estava destinada, até que renunciou a favor de seu irmão... a ele, cuja única habilidade era dominar as vibraciones da voz e da lira com uma sensibilidade tão feminina, que tinha que modularla cuidadosamente para a fazer soar viril.

Que tinha visto Eurídice nele aparte disso? Tinha-se sentido tão atraída por seu rango de príncipe herdeiro que tinha considerado pouco importante todo o demais?
...Não podia acreditar aquilo, estava acostumado, desde adolescente, a perceber com clareza quando as raparigas se deixavam atrair pela ilusão ou pelo calculado interesse pela coroa e não por sua pessoa, e Eurídice via a pessoa, além da coroa; sem dúvida via-a e apreciava-a; e também não tinha-se enfriado o mais mínimo seu amor e sua entrega após ter-lhe comunicado sua irrevocável renúncia ao trono.

Desejava estar já longe de todos aqueles condicionantes natais, se fazer homem ante a dificuldade, realizar façanhas, conseguir que sua amada pudesse se sentir orgulhosa dele a partir de zeiro por seu valor, por sua resistência, por sua sagacidad, por sua arte, pela singularidad especial de ser quem era, e não por ser filho de seu pai... ou de sua mãe, já que recusava aquele cego e desmedido orgulho que Kalíope sentia por ele, o justificasse ou não algum mérito pessoal, tão só porque o considerava egolátricamente parte de si mesma, como faziam todas as mães com seus filhos.

Aquela mesma noite Eurídice tinha-lhe dito que estava disposta a abandonar oficialmente a Fraternidad das Dríades se deixava em seu ventre a semente de um menino antes de partir; casando-se antes com ele ao modo grego, já que assim não teria o menor perigo de que sua mãe e suas parceiras pudessem sacrificar à Deusa, como a Lei exigia, o possível filho varão de uma futura Sacerdotisa-Ninfa.

Mas ele não quis aceitar. E explicou-o assim:
-Meu amor, um filho nosso não é só um produto e obra de tua capacidade natural de criação e gestação e uma síntese tua, por muito que as sacerdotisas da Deusa e séculos de matriarcado o assegurem. Eu sei que é também produto e obra da minha e uma síntese de todo o que eu sou no momento do conceber (e de todo o que teve antes de mim e me formou), como qualquer de minhas composições musicais, ou das que componho conjuntamente com outros músicos.

Do mesmo modo –seguiu- que eu só canto em público uma composição quando estou completamente seguro de que esse filho artístico meu está bem concebido e gestado porque não lhe falta nada do que pode lhe dar graça, potência e equilíbrio, assim queiro também que sejam os filhos vivos que coloco no mundo, para que encontrem em seu próprio fluir natural sua felicidade e sejam capazes de expandirla.
Não posso pôr filhos no mundo neste momento, Eurídice, porque ainda não tenho desenvolvido em mim as potências que queiro lhes transmitir. Tratarei de desenvolver nesta expedição guerreira à Cólquide. Voltarei a tí com elas desenvolvidas, e então te juro que nos casaremos e teremos filhos, se tu ainda estás livre e o desejas... ou não voltarei nunca.-
-Em que potências estás pensando?- perguntou Eurídice, muito preocupada por aquele excesso de rigor.
-A primeira –contestou ele-, agora que tenho renunciado à coroa de meu pai, é a de conseguir me fazer rei de mim mesmo, livre, independente e autosuficiente, não por causa do nome ou dos bens de minha linhagem... Essa soberania natural e essa liberdade para adaptar-me e arranjar-mas em qualquer lugar do mundo e baixo qualquer circunstância, queiro que seja algo que meus filhos levem em seu sangue, além da que vem de tua própria soberania, Eurídice. E pretendo-a conseguir sendo um estrangeiro sem títulos oficiais que faz parte, como um mais, de um grupo bem competitivo de campeões gregos.
A segunda, é que desejo conhecer na prática onde estão meus limites como homem de ação, cuan forte é o poder de minha vontade, como de real é minha autodomínio, minha prudência e meu valor, isto é, meu virilidad. Sei que é maior do que mostra minha aparência, mas preciso enfrentar reptos para medir com um realismo que eu mesmo possa comprovar.
E como o que melhor posso desejar, para o resto de minha vida, seria entregar ao cultivo e ao desenvolvimento armónico de meus filhos junto a tí, tanto os da carne como os da música, preciso viver minha aventura, agora que sou jovem e livre, a fim de que inspire minha vida e minha obra, e fortaleça também minha autoestima, para poder ter (além de mitos e histórias de outros), vivências verdadeiramente próprias que cantar e uma boa opinião de mim mesmo sobre mim mesmo, a única que me interessa, antes de que chegue o tempo no que as responsabilidades me inhiban de toda possibilidade de aventura.
…Ademais, companheira da alma, espeiro que esta ausência minha seja a última prova da realidade indudável e da solidez de nosso amor. Se sobrevive a ela, se converterá em um amor tão forte que será eterno, que irá para além da vida e da morte. Esse é o único tipo de amor que me interessa, é o que desejo ser capaz de gerar para ti, Eurídice... e é o que queiro para quem vão ser os pais de nossos filhos, uns filhos que serão os primeiros de uma nova era na que não terá outras diferenças entre a mulher e o homem, ou entre Dionísio e Apolo, que essas diferenças que lhe dão sua alegria, seu prazer e sua graça à variedad espantosa da existência.

Nada mais disse Orfeu, calou e ficou fitando-a, e em seus olhos se via cuan claramente tinha estado meditando o que tinha dito, antes do dizer.
-Eu adivinhei que todas essas potências existiam em ti, meu poeta, desde o dia em que te conheci... creio nelas e não preciso as comprovar –lhe respondeu Eurídice amorosamente-. Ademais creio em tua grande nobreza interior, que é bem mais patente e brilhante ainda que a externa de tua linhagem. Todo isso, junto a tua maravilhosa criatividade musical e à beleza de tua expresividad, me decidiram, sem a menor dúvida, a ceder a meu primeiro impulso intuitivo e a te escolher para eventual pai de meus filhos. Agora que te conheço, queiro mais que tua semente, queiro passar a vida a teu lado, queiro que o compartilhemos todo juntos... Até quisesse que quando se acabe esta vida, passássemos juntos à seguinte.
Abraçaram-se. Depois de um momento de fusão na emoção, puro instante presente, pleno, placenteiro e doloroso, sentido até o último de seus átomos, arrematou Eurídice, olhando aos olhos:
-…Mas se achas que precisas desenvolver mais essas potências até comprová-las, e propor-te reptos e viver tua aventura, vai-te como guerreiro, os aceita e a vive, amor meu, que eu compreendo o que te pedes a tí mesmo e serei a animadora de teus sonhos e quem mais celebre a cada um de teus lucros ou de tuas tentativas, quando saiba deles. E te esperarei sempre, meu amigo, meu cúmplice. O celebrarei contigo quando voltes, coroando teus triunfos ou aliviando tuas feridas e falhanços com meus beijos, que de todo terá neste mundo para nós...

Ele a abraçou de novo e abrigou a cabeça entre seus seios, querendo tocar com sua fronte o coração que morava naquele vale de ternura. Ela o acolheu como se acolhe a uma criança e acariciou-o docemente.

-Vê guerreiro meu, guerreiro-artista, poeta querido, te realiza, constrói tua própria lenda para que possamos lha contar a nossos filhos e isso lhes anime a se fazer grandes em tudo, a fim de que queiram também construir a sua e evoluir nela.

Todo isso recordava Orfeu que tinha ocorrido no quarto daquela humilde cabanha de pastor, justo antes de se entregar à união apaixonada da sua despedida, que tinha terminado com um pulo de Eurídice a um placenteiro estado de fusão no vazio, uma espécie de doce pequena morte, da que ainda não tinha regressado a seu corpo, aquele corpo formoso e benamado, que jazia sobre o leito baixo a luz da lua.
-“Onde estás se aí não estás Eurídice?” –tinha perguntado por última vez Orfeu. E desde seu próprio coração chegou-lhe clara a resposta:

-“Estou em tí, meu Orfeu, sempre estarei em tí enquanto em mim penses, porque eu sou teu feminino interno, tua alma, teu sentir da Deusa, da Mónada Espiritual que te guía, quem projetou-se a esse corpo que aí vês durante um tempo da tua vida, para melhor corresponder a teu amor”. 

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