terça-feira, 13 de setembro de 2011

50- O FIM DO MUNDO

O FIM DO MUNDO


Caminhou e caminhou por um terreno frondoso e ondulado, evitando os escassos caseríos que divisava, pois só lhe interessava chegar de uma vez ao Fim do Mundo e encontrar a praia de seus sonhos, aquela do peñón rocoso em forma de unha. Detinha-se só para dormir, envolvido em sua camada. Nada mais alborear, seguia os vales que enfilaban o oeste entre as velhas montanhas plenas de verdor. Continuava ayunando por pura disciplina, sentindo que precisaria reforçar ao máximo sua vontade e sua autodominio dantes de chegar a sua meta, mas voltou a beber para ter forças para viajar; com tudo, se sentia como um fantasma que percorresse um mundo fantasmal em busca de um semelhante. 
Após longos vales úmidos de terra fertilísima, o terreno ia ascendendo a lugares mais altos que eram verdadeiras selvas de robles e castaños milenarios e de muitas outras espécies arbóreas cujos nomes não sabia. Afiou a bengala em forma de lança com sua espada ibérica para precaverse do assalto dos lobos que aullaban pelas noites bem perto de sua fogueira.

Madrugaba em um mundo de nevoeiros que só a meia manhã se iam despejando. Em uma ocasião, a densa bruma que desde a espesura do alto da montanha avançava, adueñándose do mundo visível em duas longas línguas confluentes que semejaban braços com garras a ele dirigidos, lhe recordou a dupla fileira de ánimas quejumbrosas provenientes das cristas do alcantilado que tinha visto cruzar em seu sonho dantes de enfilar as bocas do Inferno. Justo nesse momento, ouviram-se uns ululares verdadeiramente escalofriantes, que eram respondidos por outros igual de asustadores não bem longe.
Estremecido, ocultou-se depois de uma árvore e esteve ao espreito longo momento, espada em mãos, aguardando o horrível aparecimento de algum monstro do para além. Mas nada ocorreu, já que só se tratava de um pássaro ao que na região chamam cárabo, que chamava a sua hembra. Durante todo o resto do dia e da noite, se viu submergido em um mundo de sonho no que avançava pelo médio de um mar de nevoeiro espessa que não lhe deixava ver nada a quinze passos.

Em outros momentos llovía torrencialmente durante um bom momento. Orfeo via-se obrigado a passar longo momento junto ao tronco de um daqueles gruesos robles barbados enquanto caíam gruesas gotas sobre sua camada desde os ramos. Mas depois voltava a luzir o sol com toda sua glória e a terra se via mais formosa, suas cores mais diáfanos e seus aromas mais intensos depois da lavagem.

Cruzou por uma ponte primitiva um formoso rio de águas transparentes, que bordeaba uma paisagem exuberante e encantador e aproveitou para tomar um banho em suas orlas, já que sentia a necessidade de se apurar dantes de aceder à última etapa de sua viagem.
O ayuno prolongado tinha-lhe deixado tal sensação de ligereza que quase não achava que se fosse afundar seu corpo baixo a água. Enquanto se bañaba, viu dois nutrias perseguindo-se e uma bandada de negras cornejas cruzou ruidosamente sobre sua cabeça.

Na tarde do terceiro dia, começou a baixar desde o monte e, de repente, teve uma visão gloriosa: O mar! Um horizonte cinza prata ilimitado estendia-se ante ele, para além de montanhas e cabos. O mundo da Terra Firme estava chegando a seu termo e ele era um dos poucos homens de sua geração que podia dizer que o tinha percorrido em toda sua extensão, desde o extremo Oriente onde o sol nasce, até o extremo Occidente onde morre.


Ao final de custa-a abria-se uma praia de areia branca ante uma baía cuja água sabia por fim a sal, o que lhe animou muitíssimo, ainda que só ao entardecer pôde ver, por fim, como o Sol se ocultava depois de umas montanhas que deviam chegar até o Oceano. Sentia-se muito ligeiro no meio de seu ayuno integral. Colocou umas quantas pedras em cima de outras sobre as dunas, formando um ara, e acendeu nela uma fogueira para realizar uma cerimônia. Com a ponta da espada fez-se um pequeno corte no braço esquerdo e ofrendó umas gotas de seu sangue a Poseidón, dono das ondas que lambiam a praia em frente a ele; outras gotas para Hermes, que lhe tinha guiado até o mar, e outras para Hades e Perséfone, a cujos domínios se acercava.
Era um rito excepcional, já que a Orfeo jamais tinha gostado das oferendas com sangue, mas também se encontrava em um estado excepcional. Esperava que as divinidades o entendessem e que apreciassem seu sacrifício. Oferecendo seu sangue, oferecia-se a si mesmo. “Deuses, faça-se em mim vossa vontade” -pensou-. “Eu fiz todo quanto podia fazer para chegar até aqui, levado por meu anseio. Já que sois vocês quem o habeis provocado e mantido tão fortemente em mim, espero que me sigais usando como instrumento para chegar à conclusão desta experiência. Aceitarei todo quanto me mandeis”. Em seu meditación posterior, viu-se a si mesmo pendurado por fios do céu, como uma marioneta que suas Guias podiam manejar sem resistência.

No dia seguinte passou-lho atendendo a seus intuiciones, que lhe foram levando a contornear as longas e recortadas praias da baía interior em direção norte, sendo que para o sul se divisava uma sierra rocosa e nua de estranhas formas, que tinha todo o aspecto de ser uma morada de deuses, como o Olimpo ou o Parnaso, o que também lhe atraía muito. Mas, ao dobrar uma daquelas pequenas ensenadas viu ao longe, entre brumas, a silueta de um enorme cabo avançado, semelhante a um cetáceo de pedra que se lançasse a surcar o interminável rio Oceano e soube, dentro de si, que era ali a onde deveria se dirigir.
Bordeando verdes elevações desgastadas e campos fértiles, atingiu o arranque do cabo à manhã seguinte e, médio cobertos pela areia na praia interior que a montanha resguardaba da bravura do oceano, descobriu os restos desvencijados de um navio grande, de típico aspecto mediterráneo e negra proa curvada em espiral, rodeado das numerosas embarcações ligeiras, de madeira e couro, dos nativos, os pescadores galaicos da zona. Por trás delas tinha um largo mar de dunas ao que se assomavam, entre os muros destruídos e queimados de um pequeno almacén fortificado ou de uma fábrica naval, suas choças circulares de pedra com tejado de palha de centeno, que despediam apetitosas fumaças.
Dirigiu-se a uma delas inclinando a cabeça e levantando as mãos com o saúdo suplicante do forastero e em seguida recebeu o abraço e o beijo da hospitalidade de duas dos pescadores, um homem maduro, barbudo e bem curtido e seu filho.

Compartilhando pouco depois o almoço com eles, entendeu que o povoado se chamava Hermes (mais outra palavra bárbara que prolongava feiamente o nome) e que o almacén o tinham construído, efetivamente, como uma fábrica comercial e sobre um assentamento fenicio anterior, uns helenos que ainda dez anos atrás encontravam muito rentable trazer mercadorias desde o Sur de Iberia para as trocar pelos minerales preciosos nativos, já que parecia abundar o ouro nas areias dos rios galaicos.
-De vez em quando algum navio mercante mediterráneo volta a aparecer pela baía interior durante uns dias perguntando pelos Nerios, que é o nome pelo que nos conhecem os gregos- disse o pescador-, talvez porque tomaram a nossa protetora, a deusa do mar, Navia, por uma de suas Nereidas... ainda que, em realidade, nós nos chamamos “Os Fortes”, porque há que ser muito forte para viver da pesca neste litoral tão bravo, com uns ventos tão desfavoráveis.
-Em minha terra sopra o Bóreas que vem do norte e é duro e o Céfiro, que vem do sul e é suave -disse Orfeo, por confraternizar com eles, dantes de passar a lhes perguntar o que lhe interessava- Como se chamam vossos ventos?
O pai e o filho olharam-se dubitativos. Depois falou o filho, com o cantarín e sinuoso acento dos Gal:
-Aqui é bem mais singelo: ou não há temporário e então saímos a pescar, ou o há e é impossível sair.
-Vive algum grego por aqui?
-Viveram dois durante seis anos -respondeu o filho-. Trabalhavam bem e tinham muitos ayudantes de aqui, coletando mercadorias do interior e as distribuindo enquanto chegava a próxima nave a carregar ou descargar, mas os mataram e já não há ninguém que se cuide de sua almacén.
-Quem os matou? -perguntou Orfeo horrorizado.
-Uns piratas do norte –o homem fez o gesto de cuspir ao solo- vestidos de peles e com as caras espantosamente pintadas. Chegaram em uma flotilla de doze naves ligeiras, que levavam cabeças de serpente talhadas na proa. Selvagens, sanguinarios, malnacidos. Não só mataram aos gregos, senão a todos quantos tentaram lhes opor toda a resistência possível, enquanto as mulheres e os meninos fugiam para o interior. Depois saquearam e incendiaram a villa. Ao ano voltaram a aparecer outros comerciantes helenos em três naves, mas ao ver o que tinha ocorrido, se marcharam após lhes fazer um rito funerario a seus compatriotas, e já não regressaram mais.
-O que contam os avôs -acrescentou seu pai-... é que a grande época do comércio naval e do aflujo constante de peregrinos se deu, sobretudo, em tempos mais antigos, nos que este porto era a capital de um orgulhoso reino que, infortunadamente, desapareceu uma noite baixo as águas e as dunas, engolido por uma onda enorme com a que a Deusa do Mar quis castigar a soberbia e a impiedad dos povos que aqui viviam, dantes de que esta terra fosse conquistada por nossos antepassados.

Orfeo perguntou abertamente, então, pelo Fim do Mundo dos Vivos e pela entrada à Mansão de Hades e só obteve um aprensivo encogimiento de ombros do jovem, como se não quisesse nem tratar do tema. Mas o pai olhou-o bem adentro dos olhos durante um momento e lhe disse:
-...O reino de Hades pudesse existir ou pudesse ser tão só um de tantos contos que os velhos inventam junto ao fogo para ajudar a passar o inverno... mas, se por ventura existisse, ilustre hóspede De que lhe serviria a um homem tão vivo como tu que alguém soubesse te indicar a suposta entrada a seus portais?
-Não é uma simples curiosidade -respondeu o vate-. Faz anos que não faço outra coisa senão buscar esses portais. A mulher que amo me aguarda depois deles e não me deterei até poder estar de novo junto a ela, já seja resgatando para a vida ou compartilhando com ela a morte.
Teve um longo silêncio, no que o dono da casa pareceu escudriñar até o fundo a sinceridade ou a saúde mental do viajante. Orfeo captou-o e quis dizer-lhe muitas coisas que estavam pujando por sair do coração, mas a elementar língua franca que usavam entre eles mal servia para se entender minimamente, de modo que pediu licença, sacou sua lira e começou a expressar com ela quanto era incapaz de dizer com palavras.
Quando terminou, pai e filho lhe olhavam desde seus assentos, profundamente comovidos e com os olhos úmidos e tinha também lágrimas correndo pelas bochechas das mulheres da família, que não tinham podido resistir o vir a lhe escutar. O amor de Orfeo por Eurídice enchia agora a cada rincão da modesta casa dos pescadores, um amor palpable, visível, indudable, um amor capaz de remover e estimular a capacidade de amar e os sonhos do mais tosco e seco dos seres.
-Amigo hóspede –disse o dono da casa sentidamente-, considera-te em teu próprio lar, alimenta-te e descansa bem, mas pela tarde te vai, se queres, pelo caminho que há à direita da porta de nossa casa, até o extremo deste que os forasteros chamam o Cabo do Fim do Mundo ou Promontório Ártabro, e nós o Cabo das Altas Aras e depois, em lugar de regressar, como tantos peregrinos fazem, ascende a sua cume, como ascendem os poucos que sabem. Lá acima, pode que teu coração e os deuses que comandam teu destino te digam o que te convém fazer.

Pela tarde, efetivamente, o bardo pôde contemplar o horizonte ilimitado do Grande Rio Oceano desde a ponta de um alcantilado, que não estava dirigido para Occidente, exatamente, senão mais bem para o Sur ou Sudoeste, ante um faro muito antigo de pedra que contava com um grande depósito de lenha em sua base, a coberto da chuva, para guiar aos navegantes nas águas mais agitadas e perigosas que jamais tivesse visto dantes, baixo as que se adivinhavam correntes, redemoinhos, penhascos ocultos, sirenas e monstros.
Na base do faro, inúmeros caminhantes de todas as nações tinham deixado suas impressões: exvotos, talismanes, lixo, muito lixo e signos gravados, alguns deles em forma de pata de oca ou de concha marinha; ou escritos com data, entre os que abundaban os louvores e as cruzes de gratidão a Hermes, Zeus, Poseidón e demais deuses, já conhecidos ou bárbaros.
Entre outras muitas, menos originais, pôde ler uma inscrição toscamente gravada em grandes letras gregas, assinada por um tal Diogenios de Calcis, que dizia: “Cheguei até aqui e sigo sentindo-me o mesmo imbecil”


Não se entretuvo muito em um lugar tão prosaico nem se lhe ocorreu, sequer, acrescentar uma vã marca mais ao bosque delas que o afeaban e começou a ascender, bordeando o litoral, para a cume do monte que dominava o cabo, bordedado por alcantilados rocosos muito mordidos pelas ondas e o tempo. Ascendeu entre tupidos e punzantes matojos de espinos baixos, que os nativos chamavam tojos, pelo que parecia ser um caminho de cabras ou cavalos selvagens. Custa-a era empinada e a cimeira do cabo estava bem alta, de modo que chegou acima bastante fatigado, mas lhe compensou a potência estética da paisagem, com uma vista panorámica quase circular.
Para o oeste, o imenso Oceano acabava fundindo com os nevoeiros baixas de um céu onde se apelotonaban os exércitos de nuvens, ameaçando sua escuridão com futuras batalhas de tormentas que deveriam provocar horríveis naufrágios entre os navegantes que não soubessem encontrar rapidamente um refúgio entre as altas paredes de rocha. Justo enfrente do cabo, um islote de aspecto assassino recordou-lhe a destruição do barco de Arron nada mais chegar a Iberia e a angústia que precedeu a sua milagrosa salvação; mas este mar parecia mais mil vezes frio e amenazador que o Grande Verde dos egípcios, pelasgos, fenicios e helenos. Este mar tenebroso era, mais bem, a Grande Cinza. Sentiu claramente que se achava ante o Abismo que precedia ao Hades.
Para o sul e o este se estendiam longas praias de areia branca, orladas a mais islotes, e também as velhas montanhas verdes e desgastadas pelas que tinha vindo, destacando muito bem, justo em frente ao cabo, ao outro lado da baía interior, aquele imenso conglomerado de bulbosas moles de granito rosa que lhe tinha parecido um lugar sagrado nada mais o ver e do que os indígenas lhe tinham dito, com evidente respeito, que quando a Deusa fez o mundo arrojou ali, sem ordem nem concerto, todas as pedras que lhe sobraram e que nelas se continha toda a memória da Mãe Terra e seus poderes sanadores e fecundantes.
Alguns nerios chamavam-no, simplesmente, “O Pedregal” mas outros o tinham nomeado ante Orfeo como “O Pindo”. Supôs que o batizaram assim os desgraçados comerciantes helenos que viveram e morreram no Fim do Mundo, em memória da sierra que cruza a Grécia desde a Iliria até o Golfo de Corinto... (Ou lhe teriam dado o nome do de aqui ao da Grécia os helenos galaicos da tribo de Turos...? “Vai-te a saber”, como dizia ele)... Deu-se conta de que não demoraria o sol em deitar sobre a mar pelo oeste e de que, desde ali, a aparente morada dos deuses se achava justo ao este.
Então olhou para o norte e viu que a cume do cabo ainda se coroava, por aquele lado, com várias acumulaciones de redondeados penhascos graníticos, pulidos por séculos de ventos e chuvas, de modo que se dirigiu ao primeiro deles, seguindo o caminho.




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