terça-feira, 13 de setembro de 2011

59 (2)- Ou-2. LAGOA DOS INFERNOS, continuação.

Ou-2. LAGUNA DOS INFERNOS, continuação.


.....................................................................................Como se contava ao início deste livro, depois de sobreponerse a seu horror inicial a base de converter seu ânimo e a amada lembrança de Eurídice em música, superada e deixada atrás a visão do mar de cadáveres, Orfeo se dava conta de que o avanço do navio ao compás de sua lira o levava a contemplar seu passado através de ciclos que iam recuando sobre o nevoeiro que o envolvia.

Seguiu vendo refletidas nela, a cada vez mais nítidas e rápidas, cenas intensas e entrañables dos anos anteriores: suas viagens a Samotracia, Eleusis e Sais, e dantes, o primeiro encontro com sua amada, e dantes, a escola de Quirón, e dantes, sua própria infância...
Atingiu a sentir de novo, com agradecimiento, ternura e algo de sentimento de culpa por sua rebelião ante eles, o imenso amor que tinham por ele seus pais, Kalíope e Eagro. Perdoou-lhes sinceramente e pediu perdão a suas doces lembranças por tantas desarmonías e choques de ego. Depois viveu, com intensidade angustiosa, o momento traumático de seu próprio nascimento, um parto difícil como uma agonia, uma angustiosa morte... e, de repente, encontrou-se em outra vida e em outro mundo.
Ali estava ele dantes, feto no ventre de sua mãe, plácido habitante de um mundo oceánico intrauterino onde nada se sentia estranho a um mesmo, em perfeita fusão com a Deusa, com o Tudo, no Céu. Outras sensações mais estranhas ainda lhe fizeram se sentir célula, átomo, ínfimas partículas, dança alocada de geometrías, de ondas.

Não mais referências individuais. Encontrou-se vivendo a vida do Ser Humanidade, imagens coletivas passavam rapidamente para o passado pelos corredores de nevoeiro que a nave ia modelando a seu passo.
Contemplou as guerras dos antigos: a novidade do bronze contra as armas de pedra, as tribos da época matriarcal, costumes selvagens, as cerimônias mágicas das sacerdotisas, vedadas aos homens, seus orgías extáticas reveladoras.

Ouviu em sua mente, de repente, um rumor longínquo e viu formar no nevoeiro uma imensa cortina de fogo, que vinha desde o horizonte se engolindo o mundo, o abraçando tudo, o arrancando, desintegrándolo. Arrastou-lhe uma vez mais a angústia da morte.

Mas passou e, mais atrás, pôde contemplar cenas crueis de era-a dos Titanes: mulheres e homens de civilizado aspecto, caçando e matando selvagens como se fossem ferozes, encerrando em jaulas às mulheres dos bosques, ofrendando prisioneiros a ídolos de horrível aspecto. Viu-se drogado e tumbado em um altar, no alto de uma pirámide escalonada, enquanto o sacerdote alçava a faca ritual de pedra negra sobre seu peito.

A cada vez a maior velocidade, o arquivo interno de sua espécie proporcionava-lhe cenas mais antigas: cavernícolas dançando, banquetes canibais, luta contra feras, humanos- ferozes. Viu-se entre mundos de flora e de fauna faz longo tempo desaparecidos, era agora um animal, um reptil, um peixe, uma larva estranha. Contemplou erupções horríveis de vulcões em corrente, novos maremotos, terremotos, diluvios, quedas de estrelas...

Orfeo já não estava vendo mais a história passada da Humanidade, senão a do planeta mesmo. Sentiu sua própria morte muitas vezes como a morte da cada uma das inúmeras eras geológicas que se engoliam as umas às outras no meio de horríveis cataclismos e compreendeu o mito de Saturno devorando a seus filhos de uma maneira mais visceral que dantes.

Mas lá daquelas aceleradas visões saiu das paredes de nevoeiro uma grande luz e um som como de trovão, tão súbito e potente que, por um instante lhe fez parar de tocar.


Nesse momento, a luz começou a vacilar, como se quisesse se apagar, a barca pareceu ser atrapada por um redemoinho que atirava dela, e começou a girar loucamente em torno de si mesma enquanto era arrastada a toda velocidade . Orfeo se aferró ao mastro com todas suas forças, percebendo que tudo se enchia do pavoroso fragor de uma onda gigante que estava chegando desde a sombra e que, sem dúvida, vinha o varrendo tudo.
Sentiu que já tinha vivido aquilo dantes e isso lhe deu uma estranha paz, se entregando completamente e sem resistências ao que viesse, fosse o que fosse. sacou forças de fraqueza e, como pôde, no meio da vorágine, tratou de lhe as arranjar para se centrar e recriar uma sinfonía coherente, ainda que fosse seu último ato na vida.
Era impossível tocar a lira com aquela agitación que mal lhe permitia aferrarla e se manter sujeito. Renunciou a isso, mas tentou cantar. Impossível também. Sentia um atenazante nodo na garganta. Mas nem mesmo assim rendeu-se ao pânico. Sabia que lho engoliria a onda se o fazia.
"Eu sou a tranqüila testemunha de todas as ilusões que passam por minha percepción" –recitó interiormente, se lembrando dê as instruções de seu maestro Quirón para enfrentar ao pânico. E, seguido, e centrando-se totalmente-: "Eu sou um com o Ser Indestructible através de meu amor à Deusa dos Mil Nomes”.
Agarrado ao mastro com todas suas forças fechou os olhos e gritou bem alto o nome oculto da Grande Mãe Salvadora que só se ensinava aos iniciados nos Mistérios Kabíricos no Santuário dos Grandes e Antigos Deuses de Samotracia, o repetindo em escalas espirales afinadas com o ritmo da mesma trepidación que o envolvia.
Sua fé e sua treinada maestría conseguiram o milagre: o nome venerado converteu-se em um centro ígneo e em um canal espiral solidamente assentado na raiz de sua ser, que ascendia interdimensionalmente, como dragão alado, enquanto sentia ao redor de sim um manto protetor. Orfeo pôde começar a ordenar então, em sua mente, o caos de sons, bamboleos, estremecimientos e imagens inconexas de todo tipo que a enchiam.


À medida que a melodia voltava a estructurarse em sua vibración emocional, a vertigem e a náusea cediam em seu interior; à medida que sua respiração fazia-se mais lenta e mais profunda e sua música mental mais clara e mais fluída, o arraste e o redemoinho cediam, a barca assentava-se e surfaba harmoniosamente , ascendendo a crista da onda , o fanal do mastro voltava a alumiar e o caos dava passo, enquanto tudo se precipitava para adiante, a uma nova rápida sucessão das mesmas imagens que tinha visto dantes, já não refletidas no nevoeiro externo, pois seguia de olhos fechados, senão projetadas em seu interior como um sonho. Só que agora pareciam correr em ordem inverso, do passado ao futuro, enquanto a trepidación cessava e a nave baixo seus pés se deixava levar passivamente.

Em instantes, repasó em sua tela mental suas vivências planetarias, logo as de sua ser como Espécie Humana e por fim voltou a ter claras lembranças como indivíduo: nascimento, primeiro encontro com Eurídice, roubo do Vellocino de Ouro, morte de sua amada, naufrágio ante a costa de Iberia. Os bandidos de Mata-Venados, o banho junto à sacerdotisa no Templo do Amor.
A partir daí começou a vislumbrar imagens desconhecidas, que seu entendimento interior descrevia como as de seu próprio futuro, a amplos saltos pelo tempo.
Viu-se a si mesmo de volta a sua terra natal, tocando a lira ante o entardecer no alto de uma montanha. Foi espectador, com estranha serenidad, do momento de sua morte na encarnación atual. E isto lhe tranqüilizou completamente: não seria aqui e agora, em um mareante redemoinho imparable do mar de cadáveres dos Infernos; e pôde ter a certeza, muito aliviado, de que sua vida prosseguiria eternamente em outras dimensões, fundida com a das almas amadas.

Aí teve um momento de acalma, uma espécie de vazio de imagens. Uma gozosa trégua em sua prova, um relax profundo e confiado. A onda precipitou-se como uma cascata gigante, Orfeo saiu de si e o tempo se deteve.
……………………………………….



Ao cabo de um ciclo inmedible de paz absoluta, sentiu-se regressar pouco a pouco de seu vazio, percebendo que, baixo ele, a nave se encontrava imóvel. Mal um normal balanço indicava que seguia flutuando sobre o oceano.
Atreveu-se a abrir os olhos e só viu em torno de si a barca e a negrura da noite, para além do círculo de espessa nevoeiro envolvente alumiado pelo fanal. Soltou o mastro, olhou para as escuras ondas acima da amura sem ver nada estranho e se foi sentar de novo no banco com a lira entre as mãos, agradecendo e agradecendo à Deusa.

Bem, tudo estava tranqüilo, mas tinha que prosseguir. Desejava que chegasse a seu fim aquela noite interminável.
Provou a tocar de novo a música do hino a Hermes, a ver que passava. A nave pôs-se em marcha em alguma direção, avançava entre as paredes de bruma, ela saberia para onde. “Terás que tocar todo o momento tua música”, tinha dito o siniestro barquero. Contente, depois dos angustiosos momentos recém vividos, começou a cantar um poema dedicado a Poseidón, já que, ainda sem remero, bogaba. De novo começaram a ver-se imagens em movimento projetadas sobre o nevoeiro.


Ao princípio não as reconheceu, mas depois lhe veio uma lembrança: Eram as sombras da costa do Helesponto, já que, ainda que com dificuldade, podia distinguir os alvos alcantilados do cabo Helas baixo a luz da lua, igual que no passado, quando os argonautas tentavam cruzar de noite ante as muralhas da ventosa Troya sem que suas vigías se dessem conta de que o “Argo” era uma nave grega. Para isso, remavam contracorriente pela orla oposta, com os remos envolvidos em trapos, em absoluto silêncio, a vela teñida de negro e um mascarón de proa tipicamente colquídeo superpuesto ao seu.

No entanto, aquele barco que estava vendo projetado sobre o nevoeiro não era o “Argo” nem pretendia rebasar a cidade pela orla tracia e seguir para o Bósforo e o mar Negro, senão cruzar o estreito em diagonal para ela e desembarcar por surpresa em suas praias. Chegaram à areia com o despuntar da alva, e então ouviram-se em todas as torres fortes e contínuos sons agoniados de caracolas e de cornos com os que as sentinelas dos ricos teucros davam o alarme à cidade dormida.
Mas toda a praia estava coberta por centos de naves, negras como a noite da que saíram, já embarrancadas de proa, e milhares de guerreiros gregos saltavam delas e se despregavam correndo como uma mancha de azeite, tomando posições. O lugar de Troya tinha começado e o bardo tinha completamente claro que já não estava vendo o passado, senão o futuro.
Seguiram-se ramalazos de imagens a cada vez mais rápidas e impactantes:
o choque brutal de duas carroças de guerra, arrepiados de bicos, em uma batalha de multidões. O céu escurecido pelas setas, pavilhões repletos de feridos e mutilados, povos circundantes saqueados, funerais humeantes de guerreiros, outra carroça que arrastava a toda velocidade um cadáver entre o pó e as pedras da planície, um enorme cavalo de madeira sendo entrado por um oco aberto na muralha, um pavoroso incêndio que envolvia a cidade, enquanto soavam gritos de terror e agonia por suas ruas.

Ouviu-se a si mesmo recitando ante a fogueira de um palácio, de novo como aedo em outro corpo, poemas cantados que falavam da guerra de Troya e das aventuras de Odiseo, aquele menino do arco grande que conheceu em Ítaca em vida anterior. Contemplou o desenvolvimento futuro de Tracia, cujo interior se mantinha atrasado e rudo, enquanto toda a costa era colonizada pelos gregos, até que em um dia todo o país se vió invadido por um imenso exército asiático. Chegaram-lhe imagens de lutas de repetitivos conflitos entre Oriente e Occidente a ambos lados do Egeo durante séculos.

Sentiu-se nascendo de novo em Atenas como mulher muitos séculos depois, desenvolvendo em um corpo que a cada vez se parecia mais ao de Eurídice, e então teve claro que sempre seriam um mesmo ser. Cresceu com a hegemonía da cidade, gozou da vida, teve filhos, viu o esplendor máximo da civilização helénica, na qual se reformaram os Mistérios de Eleusis e todas as concepções da religião olímpíca por influência de uma escola de pensamento que afirmava ter suas fontes em um grande músico do passado chamado Orfeo. sentiu-se morrer outra vez, e contemplou desde um plano diferente a corrupção de seu corpo, ao mesmo tempo que a de seu país mais admirado, em desgastantes lutas intestinas.

Soube depois como no norte surgia um coloso, um tracio ou um macedonio, que unificava aos litigantes netos de Heleno com o poder de seu braço, destruía para sempre à opulenta Tiro, entrava triunfante no Egito e depois estendia a cultura dos olímpicos pelo Oriente, até a remota Índia. Retornou à vida nessa época como um artista que não conheceu a fama, mas que foi muito feliz: por um momento, o mundo todo se tinha voltado grego e sua própria música e seus cantos do passado e do presente pareciam lhe dar sua forma mais autêntica àquela civilização espléndida.

Mas, em seguida, aquele sol declinaba e um novo surgia no centro da Itália, ao sul do antigo porto dos Tirsenos: um poder duro, puramente guerreiro, estendia-se com ordenada violência e eficácia, devorando as cidades coloniales dos netos de fenicios e helenos, lutando na Itália, em Iberia, na África, em batalhas descomunales com numerosa caballería e até elefantes convertidos em armas mortíferas. A própria Grécia foi dominada por eles. Também Tracia e as ricas colônias da Ásia Menor, Canaán e a Síria; inclusive o milenario Egito.
Viu-se de volta ao país dos Gal dentro do corpo de um comandante de um curtido exército, cujos homens avançavam pelos bosques do Extremo Oeste cheios de temor aos deuses infernais. Chegados frente uma escura corrente de água, ao outro lao da qual o nevoeiro ocultava os bosques, alguns legionarios se plantaram gritando, para justificar seu medo, que se tratava do Leteo, o rio do Esquecimento, e se negaram a seguir avançando. O protesto se contagió ao resto da tropa, entre a que tinha muitos gregos e tracios, hartos de uma viagem interminável a nenhuma parte. Ele, então, espoleó a seu cavalo e o fez cruzar o vau levando na mão sua ensina, que representava uma loba etrusca. Desde a outra orla chamou a seus oficiais e veteranos, um por um, por seus nomes, para que vissem que não tinha perdido a memória. Poucas jornadas depois, suas legiones contemplavam com veneração e orgulho, formadas nas Altas Aras do Cabo Ártabro, como o sol era engolido pelo mar do Fim do Mundo, achando que já não ficavam nele mais terras sem conquistar.
Mas apesar de seu aplastante poderío, aquele império foi conquistado a sua vez, não pela força das armas, senão pelo esplendor da cultura helénica, igual que dantes os invasores jonios e eolios se tinham deixado fascinar pelas sacerdotisas pelasgas aos jonios. Durante mais quinhentos anos, os Deuses do Olimpo seguiram imperando a ambos lados do Grande Verde, ainda que lhes tivessem traduzido seus nomes a uma língua estranha, que inclusive chegou a converter no idioma oficial das remotas terras dos Oestrymnios do Sur e do Norte.
. ...Enquanto a língua gaélica dos Brigmil, ainda que perdida em seu país originario, continuou usando-se durante séculos na mítica Ilha do Destino, após sua invasão pelos galaicos, tal como tinha predito Aito.

Rapidamente sucederam-se a ambos lados da nave de Orfeo novas imagens de corrupção e decadência daquele império poderosísimo, que pereceu baixo os capacetes dos cavalos de múltiplas invasões de bárbaros brutais chegados desde o norte e desde o este. Teve trecientos anos de caos e bandolerismo onde dantes tinha uma magistral civilização patriarcal que, com a riqueza, se foi fazendo matriarcal em suas elites e em seus ramos.


Mas no meio daquelas matanças reencarnó o espírito dos Brigmil em um grupo de guerreiros excepcionais, que desvelaram na ilha dos Albiones o espírito da caballería andante ao redor de uma tabela redonda. Isso foi a origem de outra mítica ordem posterior de caballeros protetores de peregrinos, que se traria da invasão européia da Síria e Canaán um conhecimento templario que conseguiu, em só sessenta anos e ajudados pelos descendentes da Fraternidad de Construtores Sagrados do maestro Jaun, encher a Europa toda de catedrais de arquitectura hermética em pura tensão ascensional desmaterializadora.
Aqueles altísimos templos serviam, igual que os antigos dólmenes, como instrumento de elevação da vibración do subconsciente coletivo da comunidade, do chumbo ao ouro e do ouro ao éter, colocando ao serviço de uma mudança mental general as finques mágicas da evolução para a imortalidade que proporcionavam as sacerdotisas antigas a seus filhos varões para que estivessem a sua altura, dantes de que sua alquimia de transformação interior degenerasse e se convertesse em burdos rituales de sacrifícios humanos de inocentes.
Nos portais e altares principais daquelas torres construídas para ascender aos céus, a antiga Deusa Mãe voltou a ocupar o lugar de honra, e em seu centro os habitantes das primeiras cidades livres que resurgían de séculos de barbarie, podiam reflexionar, meditar, cantar, caminhar e dançar sobre um laberinto evolutivo. Os Caballeros abriram as vias do mundo à livre circulação e outra vez o Caminho das Estrelas converteu-se em uma escola dinâmica de sabedoria e de intercâmbio, que preparou um renacimiento da cultura Helénica actualizada.

As visões mostraram a Orfeo como, em Iberia, apesar de que o país estava empenhado em uma guerra de reconquista que durou setecentos anos, centos de peregrinos pacíficos se penduravam a concha da Deusa do Mar e do segundo nascimento ao pescoço, para repetir a peregrinación do bardo e de tantos outros ao Fim do Mundo, seguindo a Helios Apolo em seu caminho, invocando a proteção de Luh-Hermes-Iaco, que agora era San Iago, para que lhes guiasse em sua aventura do autoencuentro...

Apareceram depois sobre o nevoeiro imagens do enorme refinamiento e riqueza da capital grega daquela época futura, “A Cidade”, chamavam-na, que dominava o estreito do Bósforo, por onde tinha passado o “Argo” para o Mar Negro.
Mas uma invasão de centos de milhares de gentes armadas que levavam a média lua da antiga Deusa em seus estandartes, cobriu a orla asiática de brancas lojas militares, construiu uma ponte de barcas sobre o Bósforo e conquistou A Cidade. O bardo se vió dentro de um corpo feminino, fundido com Eurídice, que era arrastada à força por suas ruas saqueadas e ensangrentadas, junto com outras muitas mulheres que tinham sido apiñadas como um rebanho para ser repartidas entre os conquistadores.
Pouco depois, o mesmo império dominou com mão de ferro Tracia, as terras da península helénica e as ilhas que em outro tempo tinham sojuzgado os aqueos. As mulheres gregas atingiram seu nível mais baixo de degradación social: para os novos invasores eram pouco mais que animais de trabalho e de prazer e viviam uma existência de escravas prisioneiras.


Justo então, desde a remota Iberia, uma rainha guerreira que pôde arrematar o sonho de Pirene e Andía de conquistar o rico sul, impulsionou a três naves a que partissem das praias onde tinha estado Tartessós, três, como as caras do Triplo Deusa, três com os nomes populares das três idades da Mãe em suas proas e com a cruz das quatro direções de Hermes em suas as vai. As três seguiram a direção do sol sobre as águas e, cruzando sem vacilação o grande Oceano, descobriram um novo paraíso atlántico de enorme amplitude em sua outra orla. Talvez o que Aíto entrevisse durante seu trance na torre de Hércules, além da Ilha do Destino.
Rápidas imagens sobre as paredes de nevoeiro mostraram sua conquista e sua colonização, derrocando a quanto tinha ficado dos truculentos deuses dos descendentes degenerados dos titanes da Raça Anterior, em suas pirámides escalonadas do lado oeste de seu império, manchadas pelo sangue de milhares de sacrifícios humanos que a mais baixa magia negra convertida em religião demandaba continuamente. De novo repetiam-se, séculos mais tarde, as lutas entre Arios e Atlantes, como se o Ser Universal representasse eternamente a mesma obra de teatro com os mesmos atores, mal variando o vestuario.
O nevoeiro das memórias do futuro mostrou ao antigo mundo da Atlantis Ocidental e a muitas outras regiões remotas da África e Ásia dominadas e aculturadas, em um século mais tarde, pelas duas poderosas monarquias de cultura grega de Iberia, com todos seus antigos deuses reconciliados e unificados em três figuras divinas: a do Pai Original, Deu; a da Deusa Mãe, em seu aspecto de Marianne; e a do filho que morre para ressuscitar, Dionisio se convertendo em Apolo, sol invicto, com uma cruz em lugar de um arco, com uma coroa de espinhas em lugar da coroa de laurel, mas com a mesma copa de vinho na mão como instrumento de comunión fraternal entre os homens. Enquanto, navios a cada vez maiores cruzavam o oceano, trazendo ouro para os senhores da guerra, ou transportando escravos negros encadeados para explodí-los despiadadamente em plantações de continentes longínquos.



Mas também se acabou refletindo ante Orfeo, sobre os movientes muros de nevoeiro, a decadência e queda daquele império universal ibérico no que não se punha o sol e, em seu lugar, uma nova sociedade surgiu da revolta popular nas cidades da Galia, arrancando precisamente do emporio “Massalia”, que agora era uma grande cidade mediterránea, fervendo em ânsias de liberdade. Aquela revolta profunda e sangrenta cortou as cabeças a seus reais tiranos e tratou de ressuscitar a ordem individualista e livre da civilização helénica como canon de uma nova era.
...E outra vez o mundo encheu-se de edifícios de estilo grego, outra vez reproduziram-se as antigas leis e falou-se de Ágora, de Democracia, de Museu e de Academia. E esse modelo de sociedade prendeu muito bem ao outro lado do Oceano.

Nas antigas Casitérides, os navegantes da ilha dos Albiones souberam criar um novo império mundial de corte bastante egeo, com fábricas coloniales em todas partes, apesar de seus rígidos costumes e de sua bárbara língua. Viu-se dominando-a como poeta, encarnado em um corpo daquela raça; no entanto escrevia romanticamente sobre temas gregos, gostava de vestir como grego e acabou tomando parte em uma feroz guerra (e até morrendo nela), pela independência da Grécia contra os déspotas da Nova Troya, que tinham mantido submetidas e sojuzgadas suas cidades baixo o emblema lunar de Artemis durante trezentos anos, enquanto as montanhas e as ilhas estavam abandonadas a bandidos e piratas.
E estes impérios que se iam sucedendo ante a visão do futuro revelada naquela noite intensísima a Orfeo, estenderam o modelo da civilização helénica, a adaptando a todo tipo de formas e crenças, pela órbita inteira; que resultou ser bem maior do que se cria.

As batalhas, no entanto, eram a cada vez mais devastadoras e horríveis e a era-a do Ferro sucedeu a do Chumbo, que segó infinitas vidas, e depois a do Plutônio, um novo nome para os poderes destructivos de Hades, com armas mágicas indescriptibles, capazes de arrasar uma cidade em um instante.

Mas não todo o que se criava com aquele conhecimento era dor, a Humanidade progredia enormemente: naves enormes surcaban os mares sem velas nem remos, inclusive baixo a água, carroças sem cavalos corriam sobre a terra levando pessoas e bagajes, navios aéreos eram capazes de voar de continente a continente à velocidade da Carroça Solar, sem cair como Ícaro. Uma delas voou tão alto, que atingiu a mesma lua, ainda que isto pareça um mito. Seu nome era Apolo; seu número, o da estela egípcia da Força.

E nesse remoto porvenir, até as pessoas mais singelas tinham em suas casas uns artilugios mágicos que permitiam se comunicar a distância sem necessidade de heraldos e até ouvir música sem ter a um bardo perto. E, o mais incrível: todo mundo parecia conhecer o nome de Orfeo e a qualidade innegable de suas sinfonías. Quando um grupo de pessoas cantavam em coro, lhas chamava um “orfeón.”
Ainda que o bardo perguntava-se se não seriam seus próprios delírios de grandeza o que percebia, não deixava, no entanto, de tocar. Isso parecia que ajudava a que a nave seguisse se deslizando sobre o oleaje de uma maneira estável, enquanto as estranhas imagens daquele suposto futuro continuavam projetando sobre o ar úmido a seu passo.

Assim, Orfeo pôde visualizar na tela do nevoeiro (a qual se ia voltando a cada vez mais luminosa e mais tênue), que nessa época do porvenir na que a pátria original da Civilização Helénica, tantas vezes morrida e renacida, conseguia se converter de novo em adulta e independente, seu próprio espírito, fundido com o de Eurídice, vivia no corpo de uma mulher artista e combativa, nascido em uma geração na que a maioria das féminas conscientes estavam lutando muito duro para conquistar seu direito à partilha de oportunidades sociais, culturais e econômicas, e a um plano de igualdade de direitos com os varões...
Enquanto as amazonas mais bravas e duras seguiam mantendo a esperança de recuperar seu antigo status predominante, na medida em que ingeniosas e versátiles máquinas, inventadas pela Humanidade ao longo de sua evolução, nivelaban as pequenas diferenças que ficavam entre elas e os varões: biológicas, de fortaleza física; ou aprendidas, de capacidade espacial.
Já que percebiam, com sua sabedoria prática e experiente, que entravam em uma época em que a eterna lei da oferta e a demanda valorizava a cada vez mais as especiais habilidades de relação, a agudeza intuitiva, a conexão com a Raiz, a flexibilidade, a faculdade de seduzir, de negociar, de convencer, de conciliar por médio da palavra e o sorriso verdadeiro, bem como a dedicada e amorosa colaboração responsável.
Habilidades e qualidades nas que elas eram o sexo superior desde fazia milênios, desenvolvidas para sobreviver e fazer sobreviver a sua prole frente a limitação, a opresión e a adversidad. Os últimos serão os primeiros.
Tendo muito claro que a força de seu gênero, guardião da civilização, estava na inesgotável curiosidade que sempre as empurrava a adquirir novos conhecimentos, as mulheres enchiam, não só as escolas, senão também os centros culturais comunitários, à queda da tarde, se entregando a atividades criativas ou de crescimento pessoal na mesma proporção na que os homens desperdiciaban seu precioso tempo de liberdade em rutinarios jogos competitivos e em soltar vulgares baladronadas, igual que quando eram soldados, caçadores ou pastores de ovelhas, hacinados em tabernas rebosantes de fumaça e de ruído.

Aquela Nova Hélade do futuro, que estava agora encuadrada em uma ampla confederación de nações filhas de sua cultura, tinha voltado a ser um país soberano em rápido desenvolvimento, cujos barcos surcaban os mares do mundo portando todo tipo de mercadorias igual que dantes. Mas, ao igual que o estaño nos tempos antigos, a mercadoria agora mais apreciada e valorizada era o azeite escuro de rocha, aquela brea que séculos dantes tinha sido usada como arma incendiaria contra os navios, com o nome de Fogo Grego”. Os capitães helenos transportavam-no de um continente a outro em gigantescos navios de ferro que, milagrosamente, conseguiam flutuar.
Mas não sempre: refletido no nevoeiro, Orfeo contemplou, horrorizado, o naufrágio de um daqueles barcos gregos do futuro enfrente da tempestuosa costa sagrada de Oestrymnis. E depois outro, com o nome do Mar Egeo na proa. E finalmente um terceiro, o pior desastre de todos. As sucessivas ondas de vertidos faziam que o mar todo se voltasse negro e as sujas ondas selvagens converteram a costa do Fim do Mundo e a seus peixes, mariscos e aves, em um inferno negro, incluídas a Unha de Pedra e a praia e as rochas onde viu a Eurídice em seu sonho. Inferno negro no mar, muito próximo dos negros Infernos.

Apesar de que todas estas visões lhe tinham deixado convencido da eternidade da existência e da repetição de seus ciclos individuais ou coletivos dentro do jogo cósmico de sua contínua transformação, o bardo se deu conta de que o passo do tempo e da História ou o aumento da ordem, a cultura, o bem-estar ou o progresso material, sem uma evolução paralela da consciência, não fazia, infortunadamente, mais sábios, nem mais pacíficos ou prudentes aos homens, mas sim podia voltar mais e mais perigosos seus erros.


Justo então, se difuminaron até desvanecer-se as imagens do remoto futuro e acabou-se a revelação, porque o nevoeiro, aos lados de sua barca, começava a dissipar-se, ao mesmo tempo em que despuntaba a alva e acabava a escuridão da noite mais longa de sua vida (se é que estava vivo ainda).
Orfeo comprovou com grande alívio e alegria, que por fim podia se tomar um descanso em seu tocar, já que ante ele se iam desenhando os contornos da costa. Mas não era aquela do arranque do promontório Nerio, desde a que tinha partido a noite anterior, senão três impressionantes ilhas grandes, surcadas por abruptos alcantilados diagonales e paredones rocosos, siniestras, inhóspitas e picudas, depois das que se via, entre brumas, um fundo longínquo de montanhas litorais fazendo suave contraste com a aurora.
O conjunto sugeriu-lhe as siluetas de três monstros da Idade dos Titanes que tivessem sido derrubados pela fúria dos ventos e as ondas e convertidos em pedra, para que protegessem, com as partes não submergidas de seus corpos, a boca de uma longa e profunda baía na que estava penetrando desde o sudoeste. Era um dos mais belos, doces e recortados paisagens costeros que tinha visto em todos seus periplos.

Com aquelas ilhas fazendo agora de dique, o bravo oceano se voltava lago. Orfeo recordou que tinha zarpado pela noite para o sul, mas agora tinha claro que a nave girou em direção contrária, bastante dantes do amanhecer e após aquele terrível redemoinho. Ao acercar-se mais pôde perceber que as duas ilhas do norte, formadas por duas correntes de asimétricas cristas montanhosas, se encontravam unidas, quase ao nível do mar, por uma praia e uma lagoa.
Desde o lado interior da baía, protegido dos ventos dominantes, as ilhas já não se viam mais como duros cantiles de puros penhascos, senão como belas montanhas e cóncavos vales acolhedores, resplandecientes, luminosos e exuberantes de vegetación.
Demorou em perceber as torres e balcones de três amplos palácios ciclópeos talhados na rocha que dominavam a paisagem desde as alturas, já que se encontravam tão bem integrados na natureza circundante que mal se distinguiam dela, parecendo ter sido criados no começo do mundo, junto com todos aqueles bosques de largos troncos, pomares de maçãs douradas que perfumavam o ar e jardins floridos com rumores e sons de ribeiros, cascatas e pássaros.
Formosas praias de areia blanquísima disposta em dunas e lagoas interiores contorneaban as orlas. Um paraíso de verdor as orlaba. Olhou para a cimeira de granito do bico mais agudo e descobriu que estava arrematada por uma alineación de grandes menhires de cuarzo que ascendiam ao redor dela em espiral, brilhando à luz da alva.
Sentia uma música grandiosa no ambiente, mas soava dentro de si e não no ar. A música falou-lhe na linguagem sem palavras que ele melhor conhecia e, através dela, compreendeu que se achava em uma dimensão da realidade que era accesible tão só a determinados estados de consciência. Achava-se, sem dúvida, ante os Campos Elíseos dos Gal, as Ilhas dos Bienaventurados.
Orfeo entendeu também que durante toda a noite anterior os deuses tinham estado comprovando a solidez do aprendido ao longo de seu peregrinación e seu reciclaje final no Laberinto, e que a dura prova tinha sido exitosamente superada. Com sua lira, pulsou os primeiros conformes de um hino sem voz, em sentido agradecimiento a suas guias Hermes e Apolo.

Nesse momento amanhecia, uma enorme bandada de brancas aves marinhas alçou-se da mais aguda cimeira da ilha situada mais ao norte, descreveu uma grande curva sobre ela e depois passou sobre sua embarcação para regressar de novo aos bosques e às praias. Sentiu, sem vê-los, que Aito e os Brigmil se encontravam entre elas e lhe saudavam.
Teve a clara certeza de que tinham realizado seu sonho. Ficou muito feliz ante essa evidência.
Tentou aproximar à praia, mas foi-lhe impossível. O par de remos que faziam de timão na popa seguiam bloqueados e a barca não respondia mais a sua música, se dirigindo sozinha por adiante da ilha norte, como levada por uma suave corrente, rumo a um alongado cabo que se prolongava desde o continente para ela, tal como um dedo ahorquillado apontado ao sudoeste que quisesse a tocar.

Sua parte superior era surcada por outro caminho laberíntico recortado entre matojos, muito semelhante ao que guardava Donnon na terra dos nerios. No arranque do cabo alçava-se uma alta montanha litoral em forma de pirámide e Orfeo pôde ver como em sua cimeira tinha um pequeno dolmen. A sua direita divisou uma ondulación algo mais baixa, protegida dos ventos, arrepiada de um verdadeiro bosque de aras de pedra. Sobre dois delas, das que saíam sendas fumaças que se juntavam no ar, dois grupos de figuras humanas vestidas de alvo estavam fazendo um sacrifício cara às Ilhas da Eterna Juventude.
A barca, como levada por um invisível e seguro timonel, rebasó também aquela montanha, passou ante uma longa parede alcantilada e bordeó um segundo dedo de granito do mesmo promontório, tatuado de estranhos petroglifos, que desta vez apontava para o norte neblinoso. Abria-se em seu termo outra ampla e longícua baía que uma sierra litoral limitava e arrematava em cabo, médio se distinguindo, na lonjura, outro laberinto gravado sobre seu lombo.
Por trás da ponta daquele cabo, adivinhavam-se entre as brumas do fundo mais ilhas, que protegiam novas baías e novas sierras com dólmenes, menhires e laberintos, como se os promontórios do extremo ocidental galaico fossem os dedos, ainda percorridos por potências espirales, da mão de um deus, assomada ao Oceano, que acabasse de criar no archipiélago final do Caminho a quintaesencia de sua obra planetaria, ponte entre os mundos.
As relumbrantes Ilhas dos Bienaventurados foram-se ficando atrás à medida que o bardo era levado por mar aberto para o norte, onde emergiam, a uma verdadeira distância, outras duas ilhas, uma pequena e outra bastante maior atrás, que não eram picudas e dinâmicas como as anteriores, senão formadas por contornos redondeados ou planos, o que causava a impressão de uma maior antigüedad, desgaste, estatismo e quietude.

Orfeo deixou de olhar para o fascinante paraíso dos Brigmil, que já se via afastado, e aceitou que seu destino o levasse a onde quer que devesse se cumprir. A barca rebasó em diagonal a ilha pequena pelo lado oceánico, entrou em uma zona bem sombria e enfiló claramente o extremo sul da ilha grande.
Quando começou a girar a estribor, o bardo pôde despejar qualquer dúvida sobre o lugar para onde era dirigido: uma enorme e altísima grieta, ante a que revoloteaban ou anidaban centos de corvos marinhos, se alçava escura como a noite, cortando a chumbo de acima abaixo a muralha de um rocoso alcantilado. De seu interior chegavam-lhe ruídos profundos, broncos, siniestros e retumbantes.
Dantes de penetrar nela, já estava convencido de que encontraria aberto em suas entranhas o portão principal dos Infernos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário