terça-feira, 13 de setembro de 2011

59 (1)-. A NAVE INTERDIMENSIONAL

A NAVE INTERDIMENSIONAL

Pouco depois, bem vestido e provisto tão só de sua lira, sua flauta e um candil de gordura de ovelha, Orfeo foi levado desde a praia, em uma embarcação de couro prestada, que Donnon remava, até o borde do alcantilado, por trás da Unha de Pedra, onde se despediram sem falar. Desde ali, o bardo arranjou-lhas para chegar até a ainda fechada boca da gruta pela que tinha visto, em seu sonho, penetrar a Eurídice depois de uma longa fila de espíritos flotantes. Acomodou-se sobre uma peña e começou a tocar assim que as últimas impressões do ocaso desapareceram do céu.
Seu canto já não era o canto lamentoso e melancólico da desesperada carência, como a primeira vez que tinha tocado ali, senão a firme serenidad do que está convencido de seu próprio merecimiento e do que confia na sabedoria e no amor da Vida Eterna em si mesmo, mascarada depois dos muitos nomes de deuses e deusas que os homens são capazes de imaginar.
Esteve interpretando seu melhor repertorio como uma oferenda de gratidão antecipada, até que caiu por completo a noite e acendeu o candil. Ainda seguiu cantando e tocando bastante depois, depois de breves pausas, enquanto pedia aos reis do Averno que se dignassem lhe abrir suas portas a alguém que tinha percorrido o Laberinto até o final e que tinha compreendido, sem se permitir duvidar dos resultados de seu súplica. Estava cheio de excitado entusiasmo e segurança, igual que uma luz que penetra nas sombras diluyéndolas. Estava seguro de que sua invocação não podia ficar sem resposta.

De repente, Orfeo sentiu, mais que viu, um resplendor que vinha da ponta do cabo alongado, aquela que tinha forma de nave. E ao voltar-se, já uma embarcação de madeira larga e ligeira, com a vai cinza de aspecto mediterráneo, se acercava, suave mas rapidamente, à Unha de Pedra. De seu mastro pendurava um fanal de luz amarillenta, que lhe permitiu distinguir a figura do solitário barquero que dirigia o timão para ele.
Quando chegou perto, o timonel lhe fez um sinal com a mão para que se aproximasse e o bardo se alborozó de que seus ruegos tivessem sido atendidos e de que lhe permitissem cruzar a lagoa abismal que separa os mundos da vida e da morte. De um salto subiu a bordo e sentou-se em um dos bancos.
O barquero, que tinha estado separando a embarcação das rochas com um longo remo, se voltou para ele e, com uma voz tosca e cavernosa, lhe disse severamente:
-Não te movas tão rápido, não agites minha barca. Acabaram-se para ti as pressas, mortal.
O bardo ficou cortado, calado, imóvel, sem saber que fazer.
-Música! –exigiu o barquero, pondo ao timão- Para chegar a onde vais terás que tocar todo o momento tua música, louco amante de um sonho, ninguém cruza nesta nave sem pagar o serviço com serviço.

Orfeo tomou a lira, concentrou-se e começou por um hino que invocava a guia de Hermes Psicopombo pelas regiões do para além, enquanto o timonel navegava mar adentro e para o sul; depois foi-o enlaçando com outros cánticos eleusinos que proclamavam a eternidade da vida através das intermináveis correntes de transformações aparentes do Único Ser, que representa todos os papéis de seu próprio teatro da existência. Segundo cantava, parecia-lhe que as ondas se amansaban e que a cada vez batiam com menos força contra os custados do barco.
Algo depois, a sensação do transcurso normal do tempo foi deixando em sua mente passo a um momento de presente interminável, como se estivesse sonhando e como se não existisse outra coisa no mundo que aquele fanal ignição rodeada de sombras. O mesmo barquero não passava de ser uma estátua escura colada à popa e completamente imóvel. Sua própria voz parecia ser o único vivo ali.
Depois de muitas canções seguidas, nas que lhe dava a impressão de que só se estava escutando a si mesmo, o bardo se sentiu cansado no meio daquela inacabable negrura e vazio de outros sons. Não sabia se levavam navegando toda a noite ou se só fazia uma hora ou duas que zarparan. Parou de cantar por um momento e sentiu-se rodeado de um silêncio mais pesado ainda, da mais desesperante solidão. Ademais, a brisa úmida da noite começou a trazer-lhe um cheiro estranho, desagradable.

Ao pouco, identificou-o: era um cheiro como de carne podre. Assomou-se por borda-a e não viu o mar, senão uma viscosa nevoeiro burbujeante que parecia lhes rodear em todo o círculo que o farol alumiava. A barca estava como detida nela, pois não deixava estela alguma por trás de si. Fixando-se mais, pareceu-lhe vislumbrar formas conhecidas flutuando baixo o nevoeiro. De repente estremeceu-se, eram cadáveres, muitos cadáveres flotantes e nauseantes, o navio encontrava-se sobre um mar noturno de corpos sem vida a deriva-a, dos que se desprendia um tufo a cada vez mais patente de vapores de descomposição.
Orfeo sentiu um buraco em seu ventre e um terrível desejo de vomitar sobre a amura, mas algo em seu interior lhe fez agüentar e se conter. Dirigiu-se ao barquero, em busca de uma explicação, mas na popa não tinha ninguém, o timão estava como bloqueado; encontrava-se só, no meio de nenhuma parte, rodeado do asco e do horror. A luz do fanal, no alto do mastro, começou a fazer-se mais e mais mortecina. 

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