segunda-feira, 12 de setembro de 2011

36- CHEGADA À IBÉRIA

PARTE TERCEIRA:
INICIAÇÔES PIRENAICAS
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CHEGADA À IBÉRIA       O músico Orfeu de Trácia chega, após um longo periplo por todo o Mediterráneo, ao litoral nororiental da Ibéria. Sua intenção é cruzar aquele remoto e ainda selvagem país pelo que muitos séculos mais tarde acabara-se chamando o  Caminho de Santiago, para ver de chegar ao Fim do Mundo, que, naquela época da Idade do Bronze tardia, supunha-se estar no que agora é Galícia, junto ao Oceano Atlántico. Orfeu espera poder descer desde lá ao Mundo dos Mortos, para tentar o resgate da sua esposa Eurídice, falhecida no día de seu casamento.


Uma manhã nublada e ventosa avistaron, por fim, no horizonte ocidental, ao final do Golfo de León, a cordilleira dos Pirineus, que naquele tempo estavam cobertos por uma frondosísima selva temperada e selvagem que derramava-se sobre o mar. O comandante chamou a Orfeu e lhe disse que o último cabo dantes dos montes se chamava cabo Cerbero, como o cão guardião dos Infernos, “porque ao outro lado começa a Iberia, o País dos Mortos, onde está o Reino cavernoso de Hades”. Ante aquela agreste beleza, o coração do bardo acelerou-se, sentindo-se a cada vez mais cerca de Eurídice e de seu resgate.

Mas o vento tramontano começou a arreciar desde o norte inesperadamente, picando o mar e formando-se uma violenta tempestade que os foi levando, em andanadas a cada vez mais violentas, contra as altas e picudas rochas da costa, que não mostrava refúgio algum.

Arron ordenou retirar a vela e que todos remassem com todas suas forças em direção contrária ao litoral. O bramido imponente do vendaval fazia restallar as sensatas da nave e insuflaba pavor nos corações. Para animar-se a si mesmo e aos tripulantes, Orfeo se arrancou a cantar.

E conta-se que, apesar da sinistra ventolera , a vibración de seu canto era tão expresiva, tão intensa e tão bela, que, sem ele o saber, também começaram a lhe prestar atenção os mais antigos habitantes da região litoral, os gigantes intraterrenos, titánicos filhos da Terra, de quem se dizia que tinham alçado antigamente os vetustos dólmenes da cordillera mas que, depois de ser derrotados pelos deuses que agora imperaban sobre a nova era, se sutilizaron, mudaram de dimensão e são os invisíveis gênios das montanhas.

Ainda que assegura-se que vivem em um mundo paralelo ao nosso, inmersos completamente no interior estrutural da natureza como parte de sua vitalidad, os antigos gigantes tectónicos , ao igual que toda a jerarqúia dévica, não deixam de ser muito sensíveis às refinadas vibraciones emitidas pelo verbo daqueles humanos que estão bem evoluídos, pois o som é uma onda primigenia e interdimensional que penetra e inflluye em todos os planos e níveis,

De modo que, cautivados pelo canto do bardo, se foram inclinando e inclinando a cada vez mais em direção a ele para lhe escutar, além de lhe desejar àquela maravilhosa voz que sobrevivesse ao duro trance no que se encontrava.

Mas não serviram de nada nem a habilidade do comandante Arron nem os desesperados esforços dos remeros: a nave, arrastada pelo vendaval e pelas ondas, acabou por chocar contra um islote do Golfo de Rosas que hoje se conhece como O Gato, se abrindo uma grande brecha a seu custado.

Todo mundo entrou em pânico e ninguém se preocupava senão de sua própria salvação. Orfeo tinha-se colocado na frente a fita púrpura dos Kabiros de Samotracia e invocava com seu canto a proteção dos poderes ígneos da terra e do mar, salvadores de náufragos.

- Grandes e antigos Deuses auxiliadnos, salvem da morte, e eu dedicarei o resto de minha vida a vos servir com todos meus talentos e potências
!
Mas o barco estava começando a afundar-se irremissivelmente e seguia chocando e chocando, lançando a homens e remos de um lado a outro.
- Deusa da Misericordia, Mãe Nossa, apiádate de nós, nos salva, nos salva!

Agarrado ao mastro, agüentando como podia os contínuos zarandeos e os embates das ondas que invadiam a coberta, sentindo que se ia juntar com Eurídice na dimensão da morte, o bardo não parava de cantar e seu tom se ia fazendo mais e mais impressionante.

- Misericordia, Misericordia, Misericordia, Senhora ! Salva-nos pára que possamos terminar o que viemos a fazer a esta vida !

-Salva-nos, Mãe, para que eu te sirva sempre com todo minha ser!

Os gênios intraterrenos e os devas construtores de formas naturais, profundamente comovidos, impulsionados ademais pelo poder dos Kabiros, não puderam evitar um estremecimiento vibratorio, que produziu um derrube general de toda a estrutura geológicos que sua energia mental sustentava, em direção ao cantor. Os extremos da cordillera derramaram-se sobre o mar em um tremendo cataclismo, formando inesperadamente o pétreo cabo de Creus, de barrancos e pontas arrepiado.

Quando Orfeo, Arron e sua tripulação já estavam braceando angustiosamente na água, no meio de umas ondas agitadísimas que os podiam despedaçar em qualquer momento contra o islote, milhões de elementares minerales dos Pirineos se estenderam juntos baixo eles criando uma rede de energia-forma entre eles , a que devas e gênios lhes sugeriam com seus verbos criadores, uma rede de geometrías moleculares que parecia a garra estendida de um enorme dragão, formando em instantes uma sólida plataforma de rocha que os recolheu e os elevou muitas dezenas de metros sobre o mar.

Uma vez se sentindo a salvo e em pé sobre a terra, o vate voltou a entoar seu mais alegre canto, desta vez melhorado pelo júbilo da sobrevivência, em agradecimiento à Deusa e aos Senhores do Subsuelo. Baixo seu magistral domínio das vibraciones, os ciclos sonoros de sua música fizeram que a dança dos elementares a seu compás conformasse toda uma estrutura de espirales em um laberinto com planta em oito, que cohexionó e deu forma tridimensional ao colosal cabo recém criado, se elevando suas curvas de nível ao mesmo ritmo que as intensidades da sinfonía.

Ademais, a tempestade foi-se acalmando rapidamente e o sol brilhou de novo. Em adiante, esse alongado e alto saliente seria chamado Cabo de Orfeo, ou Cap Norfeu.

O comandante Arron estava gratamente surpreendido de que, em um desastre tal, não tivesse que lamentar a perda de nem um só de seus homens, nem feridas graves, salvo contusiones, e que se preservasse a maior parte da mercadoria, já que, ainda que o “Tursha” estivesse bastante destroçado, não se tinha afundado, senão que tinha ficado retido em um pliegue da montanha na metade do cabo. Quase todo o que tinha saído dele flutuando, se encontrava espalhado por seu plano lombo, o mesmo que eles.

Assim que sua tripulação reuniu o mais necessário, prepararam una ara para fazer devotamente pingües sacrifícios à Deusa, sem esquecer a nenhum dos deuses protetores de cada um, para agradecer o milagre que acabava de lhes salvar.

Estaba claro que uma nova fase da relação de Orfeu com o Divino tinha começado, mais íntima, mais confiante, mais entregadamente agradecida, ante tais evidências de aquela extraordinária intervenção ao seu favor.  Ele não parava de recordar a oferta de si que tinha feito no momento crítico.

Os tirsenos e focenses interpretaram sua salvação milagrosa como sinal divino de que tinham chegado ao lugar de assentamento que buscavam e decidiram ficar a levantar um almacén fortificado e um mercado onde trocar com os naturais os bens que conseguiram recuperar do naufrágio e aqueles que pudessem trazer em adiante, assim que se conseguisse construir um novo barco.

Escolheram para aquele fim a primeira praia ampla que encontraram ao sul do cabo recém formado, próxima a montes onde tinha abundante madeira, que é o arranque de um amplísimo golfo semicircular ao que se assoma uma fértil e bem regada planície.

Os naturais ibéricos que viviam nela, os Indiketas, uma mistura de pelasgos ligures da Quinta Raça com acadianos da Quarta, acolheram aos náufragos com compassiva generosidad (ao princípio parecia que se negavam a todo quanto se lhes solicitava, mas depois resultou que seu gesto para dizer “sim” era o mesmo que os gregos usavam para dizer “não”, mover rapidamente a cabeça acima e abaixo).

Ainda que bastante rústicos, a proximidade ao mar tinha-os fato abertos e cordiais, já que fazia muito tempo que estavam acostumados ao intercâmbio com navegantes estrangeiros. Muitos deles entendiam a língua franca pelasgo-ligur que os marinhos usavam normalmente em seus intercâmbios, uma língua inflexiva com muitíssimos termos cretenses, fenicios, sardos e etruscos, seguramemente acadiana em sua origem, que Orfeo entendia a cada vez melhor quanto mais a ouvia, como se a estivesse recuperando de sua memória de outras vidas.
Estava claro que os nativos se assombraram muitíssimo do horrível derrube que tinha salvado aos náufragos, prolongando, ao mesmo tempo, seu território sem lhes causar o menor dano; de modo que também o consideraram um bom augúrio e não lhes pareceu mau a ideia de que aqueles protegidos dos deuses estabelecessem em sua costa um mercado franco permanente.


Orfeo passou em algumas semanas ajudando a obter o consentimento oficial do Conselho dos nativos ao assentamento grego, bem como a cessão de terrenos e a colaboração pessoal de futuros sócios do emporio, para o que usou do encanto de suas músicas, que eram uma linguagem de entendimento universal. Mas depois decidiu continuar seu caminho para o Fim do Mundo.
Antes de deixar aos seus companheiros, ele quis transplantar um rosal silvestre local para ornar a base de pedra sobre a que se assentava o mascarón de proa do navio “Tursha” naufragado, que representava a Pegaso, o mítico cavalo alado, personificación da glória ascendente na que se transmuta o vencimento das maiores dificuldades, cavalo que nasceu do sangue da terrível Gorgona Medusa quando o herói Perseo lhe cortou a cabeça. Os gregos tinham-no colocado como tótem e lembrança de sua cultura pátria no centro do terreno que os íberos lhes concederam.
Contam os focenses e tirsenos de Occidente a quem querem-lhes ouvir, que o vate tracio tocou tão docemente sua flauta em agradecimiento à Deusa da Vida e da Misericordia, que os elementares do jovem rosal, fascinados por seu maestría e conduzidos pela Mãe do Mundo, Rainha dos Devas, o fizeram se desenvolver plenamente em poucos minutos, como uma resposta de Sua Graça Plena à oferenda. Até brotaram dele três espléndidas rosas vermelhas. Assim justificavam aqueles jonios o nome e emblema de seu novo emporio em Iberia.

-

Então, Arron -disse depois Orfeo- Ficarás aqui?
-Nem falar, colega, eu sou homem de mar, me fixar em terra firme como um navio varado me envelheceria dez anos em só dois... Construiremos um novo barco e voltarei a Tirsenes com os que o desejem e depois seguirei navegando de aqui para lá. Este assentamento, para mim, não é senão um porto mais de minha rota e de minha obra, já que farei todo o possível para que cresça, igual que fiz na Itália ou em Tartessós...
-Pois que os deuses te acompanhem, que sejas feliz em tuas navegações e que te recordem sempre as cidades que ajudaste a criar –e o bardo lhe deu um grande abraço.
-Que encontres o que tentas encontrar... ou a satisfação de tê-lo tentado, amigo Orfeo! E enquanto, não te esqueças de que a vida é o caminho e não a meta! –respondeu o comandante com afeto.

Depois de despedir-se de todos, Orfeo começou a caminhar para o norte, explorando a fermosura primigénia e telúrica do novo cabo que o derrube tinha criado, até chegar no ponto mais oriental da Ibéria naquela zona, que era um longo e alto promontório bordeado de alcantilados rocosos. Sobre sua popa e cara ao mar azul que lhe mantinha a uma enorme distância de sua terra natal, o bardo construiu uma cruz com um par de troncos em homenagem a Hermes, senhor das encrucijadas, padroeiro dos caminhantes e sábio guia das almas que viajam ao Ultramundo, elevando-a sobre um montículo cónico de pedras, como se acostumava, e depois pediu com intensidade ao deus que lhe guiasse na longa viagem a pé para o Fim do Mundo que ia empreender.
Justo após a petição, uma bandada de centos de ánsares selvagens de bico rosado, peito branco e asas apardadas que encontravam-se descansando nas marismas que bordean o golfo, no meio da sua emigração outonal desde o Norte da Europa até a cálida África, mudaram de repente o seu itinerário instintivo de sempre, passaram rápidos e barulhentos, dando contínuos aletazos, muitos metros acima da cabeça de Orfeo, descreveram uma grande curva e avançaram pelo espaço de Leste a Oeste, assinalando-lhe o caminho.

Quase simultaneamente, outra bandada de grulhas coloridas com penacho na cabeça alçou-se e foi embora seguindo os ánsares.
O bardo agradeceu o claríssimo sinal de seu apoio dada pelo Deus dos Caminhos e empreendeu a marcha naquela direção tão bem indicada. Desde então, a oca ou ánsar é um dos animais totémicos dos caminhantes do Fim do Mundo, que dariam seu nome a muitos dos pontos do Caminho Sagrado onde a ajuda do Grande Guia  foi fazendo-se mais patente.

Em adiante, aquele lugar seria venerado por outros peregrinos, se levantariam nele novas cruzes propiciatorias e se acabaria chamando Cabo de Cruzes ou Cap de Creus, espaço mágico que acolheu e inspirou sempre aos maiores artistas e músicos, os quais deram prestígio cultural em todo mundo a Cadaqués, a formosa villa costera que hoje existe próxima ao cabo.
Orfeu incorporou a sua Canção Ocidental todas estas imagens e sensações, tocando junto a uma formosa cascata (hoje mal um hilillo de água), que refrescaba o coração da antiga floresta de Selva do Mar, onde o bardo se tinha bañado e apurado por respeito, dantes de subir à montanha sagrada dos Indiketas. Depois cantou-a uma vez mais em honra de suas salvadores, os Kabiros de oculto nome. Fazer desde sua cume, que dominava a panorámica do Cabo. Era o último ponto, muito arborizado e povoado de construções megalíticas antiquísimas, desde onde poderia divisar o mar Mediterráneo dantes de adentrarse no amplo interior de Iberia, de modo que se despediu do Grande Verde como quem se despede de uma mãe.

Ao baixar da cimeira entrou no maior daqueles dólmenes, que tinha forma de galería. Depois de meditar um momento em seu interior, pulsou sua lira para provar suas condições acústicas. Achou-as muito boas, tanto como as de uma caverna. Perguntou-se por que e se deu conta de que a imensa pedra plana que fazia de teto se encontrava mal suspendida das pontas das lousas laterais que faziam de suporte. Em vários lugares, inclusive, tinha-se introduzido uma diminuta pedra redonda entre suporte e mesa para reduzir ao mínimo a superfície de apoio.
Percebeu que em toda a construção se tinha tentado conseguir o máximo de tensão e o mínimo de apoio para evitar a dispersión de energia e sua vaciamiento para terra, pelo que a lousa superior era um enorme acumulador de tensas vibraciones e constituía um excelente contenedor de resonancias, algo bem como um instrumento musical de pedra.

Passou um bom momento fazendo mil conjecturas sobre os tipos de energia que os antigos titanes deveram utilizar ali para a intensificar, a elevar a oitavas superiores e talvez até a acumular e a armazenar; de tal modo que, na cada ocasião que se servissem do dolmen, já tivesse uma energia criada e ligada com o subconsciente coletivo sobre a que continuar trabalhando, uma egrégora, em lugar de ter que criar ao princípio da cada sessão. Supôs que, a cada vez que se usava, a energia-pensamento ou a energia-sentimento acumulada, inspirava aos participantes, quem, ao mesmo tempo, recargaban e aumentavam a informação do acumulador.
Apostou que deveriam se tratar de sinergías coletivas, a base de cantos repetitivos e músicas rituales como as de Quirón, as quais seguramente se empregariam para curar ou para fazer decretos mágicos, criar mantos protetores, invocar aliados astrales, meditar sobre decisões importantes, exorcizar negatividad e até enterrar baixo ela às pessoas mais sábias, aos heróis da comunidade ou aos objetos totémicos que representassem seus poderes e virtudes, de maneira que essa vibración permanecesse entre eles.
Deduziu que outros recintos sagrados, mais amplos e ao ar livre, tais como um grande círculo de enormes pedras enhiestas que tinha visto no meio de um bosque ao subir, serviriam para se reunir em cerimônias maiores e danças coletivas.
Seguramente os bardos como ele se ocupariam, naqueles tempos longínquos, de aplicar a tabela de harmonia àquele enorme instrumento musical de rocha, a fim do manter na afinación desejada. Também contariam ali dentro as histórias e tradições da tribo, para iniciar de uma maneira solene aos jovens nos valores que dariam continuidade à comunidade, durante o período de passagem da infância à juventude, tal como faziam os homens-centauros do monte Pelión. Em tal lugar, imponente e sagrado, os rapazs se poriam em um estado de receptividad mais concentrado do habitual, talvez ajudado pela ingestión de substâncias visionarias... Lamentou Orfeo que aquele conhecimento da Quarta Raça se tivesse perdido com a mudança de era.
Antes de sair, se afinó todo o que pôde com a energia do ambiente e pediu aos espíritos guardiães do país dos íberos e a seus egrégoras que lhe inspirassem e lhe guiassem na busca e realização de seu objetivo. Depois cantou e tocou seus mais sagrados e universais hinos, como oferenda para a misteriosa esencia divina do Único que reside como Múltiplo em todas as entidades conscientes de todas as dimensões e variados graus de consciência, fora qual fosse a forma particular na que se lhes rendesse culto naquela terra.

-Deus Único, Pai-Mãe Criador da Vida, Divina Energia Feminina da Compaixão, a Graça e a Misericordia, Alta Hierarquia de Espíritos Puros, Maestros e Guias da Humanidade, renovo minha oferta de todo meu ser a vocês. Agradeço com todo meu coração esta continuação de minha existência sobre a terra que me brindastes, a dedicarei a vos alabar, vos cantar e vos honrar. Guiem-me, faz favor, ao encontro de minha alma amada e perdida.
-Deuses e Deusas Regentes deste País do Fim do Mundo, Altos Espíritos, Mestres e Devas- disse, abrindo suas mãos ante a paisagem-, eu, Orfeu de Trácia, um humilde bardo ao serviço da exaltação da Suprema Divindade, da Sua Harmonia e do Seu Amor, saúdo-vos com todo respeito e vos peço licença para percorrer o vosso Reino, vossa proteção e vossa generosa guía para eu chegar até o Oceano Ocidental. Que eu intua sempre a Inspiração e a Vontade Divinas e que minha pequena inspiração e vontade sejam dignas Delas, As exprimam, As cumpram,  As honrem, e honrem com isso a todos vocês.

Quando baixou do monte, no dia declinaba. No plano, como uma última estribación desgajada da sierra dos dólmenes, se alçava em solitário um alto peñón, sobre o que os nativos indiketas tinham construído um povoado fortificado.
Acercou-se devagar a seus muros fazendo o gesto dos suplicantes, pediu hospitalidade em pelasgo-ligur e, depois de identificar-se, concederam-lha nos próprios alojamentos da guarda, uma espécie de gruta tapiada entre paredes de rochas ciclópeas.

O lugar chamava-se algo bem como Karmanzó. Orfeo esteve tocando algumas canções para os guerreiros indiketas no alto da muralha, enquanto o sol despedia-se por ocidente. Seus anfitriões, muito comprazidos, mostraram-se muito amáveis e convidaram-lhe a compartilhar um asado de cabra que estavam dourando sobre as brasas e um aromático veio de frutas. Foi deitar-se cedo porque jogou-lhes de ali um forte vento que vinha de por trás da sierra, o mesmo que tinha estrellado o barco de Arron.

Durante toda a noite, aquele vento obsesionante não deixou de açoitar os tetos de seu alojamento nem um momento, como se os fosse arrancar. O vento se coló nos sonhos do bardo e converteu-se em um caótico concerto de graves trombetas que lhe levaram a revivir os momentos terríveis do naufrágio, enquanto tocava, aferrado ao mastro, com a fita púrpura dos Kabiros em seu frente.
As trombetas se convertian em serpentes gigantes que baixavam das montanhas ao mar, que rodeavam a sua nave e a todos os tripulantes e lhos levavam sobre seus lombos, voando terra adentro. As serpentes, dançando a música do vento, seguiam-se umas a outras traçando um laberinto de espirales concatenadas no ar sobre toda a região do cabo de sua salvação e da sierra dos dólmenes.
Finalmente, confluían em cima da fortaleza roqueira de Karmanzó, penetravam baixo a techumbre levantada pelo vento e eram atraídas pela boca de um titán de longos bigotes curvos, em pé com os braços abertos no centro da estância, que lhas engolia a todas. Orfeo saltou pelo ar no último momento, ficando agarrado de uma viga do teto, enquanto via como sua serpente era engullida também.
O rosto bigotudo do titán experimentou uma enorme transformação, como se os reptiles seguissem agitando em seu interior. Seus olhos giraram e abriram-se como platos, alucinados, e sua cabeça reventó de repente em mil pedaços, saindo dela a deusa Atenea, formosa e altiva, envolvida em uma camada curta de pele de carnero e armada de uma longa lança. Atenea voltou-se para Occidente:

“Cada quem merece-se o que sonha, essa é a Lei” -disse. E a um gesto de sua mão toda a parede se derrubou.
Então levantou lança-a sobre seu ombro, concentrou-se em posição e arrojou-a com grande força para o horizonte. Depois desprendeu-se de seu chal de pele e arrojou-o também, mas para acima, em direção a Orfeo.
No ar, a pele converteu-se no Vellocino de Ouro e este, de imediato, em um grande carnero vivo de lana dourada que recolheu a Orfeo sobre seu lombo e saiu voando para o exterior, passando pelo oco da parede derrubada ante os olhos verdes penetrantes da deusa.
A incrível velocidade, o carnero atravessou como em um grande salto a noite, adiantando ao tempo, rebasando à lança de Atenea, que ainda corria cortando o ar, rebasando às bandadas de ánsares e grullas coloridas de Hermes e chegando ao outro extremo de Iberia quando mal estava o sol a ponto de tocar o horizonte acendido em lumes do Oceano do Fim do Mundo.
Então, formou-se um grande redemoinho na superfície do mar, que se converteu em uma grande copa ascendente e se alçou para receber e engullir ao Senhor da Luz em seu seio. Um instante depois, também o Carnero de Ouro, com Orfeo em seu grupa, se precipitaram adentro.
Quando o tracio acordou, em um rincão do corpo de guarda do povoado de Karmanzó, o vento tinha deixado de soar, permaneciam intactos o teto e a parede, e a luz da alva se filtraba através de um ventanuco, anunciando no dia em que começaria seu longo caminho a pé através de Iberia.

Com o tempo, novos colonos focenses de Rosas, que, chegando em sucessivas ondas desde a crescente Massilia, acabariam substituindo por completo aos tirsenos, dedicaram um templo a Afrodita de pele rosada, deusa da beleza e o amor sobre a montanha na que tinha cantado Orfeo... Ainda que séculos mais tarde os cristãos o derrubariam e suas ruínas acabaram servindo de refúgio a alguns ermitaños. Também levantaram outro eremitorio no bico do monte, o de San Salvador de Verdera ou Montsalvat, que hoje é um castelo em ruínas, dominando uma paisagem ao que muitas guerras e incêndios seguidos e uma exploração antiecológica, brutal e sem amor, despoblaron quase totalmente de seu primitivo verdor exuberante e sagrado.
Claro que tudo é recuperable, se não se perde a consciência de que o maior tesouro e a maior qualidade de vida que existe é a que se pode desenvolver no marco da natureza pura e preservada, mimada pela arte e pelo saber viver cultivando a harmonia.
A canção de Orfeo, no entanto, persistiu na alma do lugar, formando, como continuação do laberinto de Cap Norfeu, um segundo laberinto sonoro em forma de oito, com seu centro situado no que os íberos indiketas da zona chamavam "a Sierra Sagrada dos Antepassados". Sobre a galería dolménica onde tinha meditado o bardo se construiria mais tarde, na alta Idade Média, a cripta do impressionante Monasterio de Rodas, onde se guardaram reliquias de grande fama, talvez o Santo Grial entre elas, que fariam se desviar para ali a muitos peregrinos de Santiago.

Este Segundo Laberinto sonoro segue a direção da sierra e um de seus eixos principais une o Cap Norfeu com o lugar de poder onde se construiu, séculos depois, o monasterio de San Quirc de Colera, seguindo a linha do Montsalvat de Verdera e tendo como centro a San Pere de Rodas. Seu extremo oriental está na ponta do cabo de Creus, e o ocidental, seguindo a linha do paralelo 42, na zona que hoje é Peralada, para além do roqueiro castelo de Quermançó, caixa de resonancia do vento tramontano, onde (segundo cantou um bardo muito posterior a Orfeo, chamado Wagner), pôde se ocultar a Lança da Paixão, em uma região na que também se fala de um tesouro em dracmas gregos enterrado pelos judeus de Vilajüiga em uma tal "cabra de ouro", que apareceu no lugar chamado "O Argunista", o que quiçá tem algo que ver com o Vellocino de Ouro e com os Argonautas, já que o tempo acaba deformando todos os topônimos originais.


Depois de despedir dos guardiães indiketas do povoado fortificado de Karmanzó, Orfeo empreendeu caminho terra adentro, pelos baixos da cordillera dos Pirineos, seguindo a direção natural da corrente de montes, percorrendo, nos dias seguintes, os vales que hoje se chamam, nas línguas locais nas que se corromperam os grandes idiomas universais do passado, Ceret e Vallespir e chegando até Prades, onde ficou impressionado pela potência piramidal do Bico Canigó.
Os naturais do país, gentes muito simpáticas e acolhedoras, estavam celebrando sua principal festa anual, a que honrava suas origens, lhe deram hospitalidade em uma das melhores casas e lhe convidaron a seu banquete comunitário, Seus colegas de mesa lhe explicaram que a lenda dizia que o bico da montanha tinha sido levantado pelo mesmo Hércules durante sua primeira viagem a Occidente ,
Após a melhor comida que o curtido viajante tomava em muito tempo, arrematada com deliciosos postres, o bardo nativo que presidia a cerimônia cantou, ante toda a assembléia, a história dos amores de Hércules e Pyrene.

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