domingo, 11 de setembro de 2011

3- ADEUS, EURÍDICE

ADEUS, EURÍDICE

Anónimo Anónimo
-Eurídice, meu amor, venho a despedir-me...
-Antes de despedir-te, saúda-me, homem, dá-me um beijo -riu ela. E abraçou-o-. Aonde estás indo?
Ele correspondeu ao abraço, a besou, a olhou com pena e disse:
-Meu amor: desta vez vou-me a uma longa viagem e passará muito tempo até que nos vejamos de novo... Marcho  à Cólquide com Jasão. Passado amanhã, ao amanhecer, saio em um barco para encontrar-me com ele em Yolkos.
Eurídice era menuda, alegre e cheia de graça, carinhosa e muito feminina. Seu formoso corpo, que ainda recordava seu adolescencia, ocultava uma personalidade voluntariosa e bastante madura para sua idade.
-A Cólquide... Onde fica isso, Orfeu? Está bem longe?
-Pois há que se embarcar e percorrer toda a costa de Trácia e as ilhas de Lemnos e Samotracia; cruzar o Helesponto sem que se inteirem os troyanos e depois o Mar de Mármara; passar o Bósforo para ao Mar Negro e costear a Bitinia em direção ao este, seguindo para além dos países dos Mariandinos, os Henetes, os Paflagonios –ele ia contando com os dedos-; rebasar os dos Calibeos, os Tibarenios, os Mosinos e o das Amazonas... até chegar a uns úmidos vais ao pié sudoeste da cordillera do Cáucaso. Então entrar com disimulo pela desembocadura pantanosa do rio Fasis, que separa a Europa da Ásia, até Ea, a capital dos colquídeos, que está no interior. Ali teremos que conseguir, por bem ou por mal, um troféu para nosso prestígio... E depois arranjar-no-las para voltar, claro.

-Mas Orfeu! Se vais-te com os gregos, quase todas essas zonas são inimigas para eles. Terá perigo de morte. Ou de ser esclavizado.
-Sim há, mas vão os mais selectos campeões da Grécia na expedição.
-Por que gostarás tanto dos gregos, Orfeu? Teu és um homem sereno, doce, cultivado, inclusive trascendente, e eles são tão agressivos e patriarcalistas... durante milênios tivemos uma civilização equilibrada, a cada sexo em seu lugar, a mulher dentro, dirigindo os fundamentos da vida e mantendo a ordem, o rumo e a evolução da comunidade, o homem no exterior, protegendo o território, apoiando e servindo, igual que os leões. Os gregos estão querendo que o homem o dirija todo e que a mulher se converta em uma calada escrava do lar de seu “esposo e senhor”... Quando o homem manda, a harmonia se rompe e o mundo se converte em uma competição despiadada, em um campo de batalha.
-Meu amor, é só um movimento da eterna lei da balança... o mundo está-se expandiendo por causa dos progressos na navegação, saímos do ovo do mar Egeu, onde estávamos confinados até agora... nos estenderemos até o Cáucaso e a Índia e o Oceano e para além, se é que há um “Para além do Oceano”. E é natural que nas fases expansivas predomine o impulso masculino... mas, após a expansão, todo se reequilibrará de novo em um universo mais largo, podes estar segura. E no equilíbrio universal e na sua estabilização, a Grande Deusa tornará a imperar, sustentada e servida amorosamente por todas as potências do cosmos, para ir gestando na sombra lentamente as sementes selectas de um novo paradigma, ate chegar a hora de fazé-las brotar e crescer, tras o qual seguirá um novo período de impulso do aspecto masculino da Divindade e de  expansão construtiva de civilizações mundiais …Assim é como as escolas iniciáticas dizem que sempre se tem desenvolvido os ciclos da história, Eurídice.

...Porém…o Cáucaso… são as montanhas míticas de onde veio nossa raça! É como um retorno às origens…E isso deve ser longe demais! …vamos separar-nos por muito tempo... que vai acontecer com nosso amor?
-Nosso amor é o melhor que me chegou até agora e tem resistido já várias longas separações, Eurídice. Quando me marchei a me instruir com Quirão na Fraternidad dos Filhos de Cronos, quando fui a receber os mistérios de Samotracia e Eleusis, quando estive no Egito... Eu passava meses ou anos fora, regressava, te encontrava e era como se nos tivéssemos despedido a tarde anterior...
-...No entanto -seguiu, acariciando-a-, hoje sei que todas essas viagens apenas formavam parte de minha aprendizagem elementar, minha querida... Estava faltando, realmente, a prática do aprendido. E uma prática em frente à realidade mesma... O que sento neste momento é algo muito diferente à emoção das descobertas simples e básicos da juventude. Ésto que me está ocorrendo agora faz parte de minha maneira de ser, ou de meu destino.
-Mas que é? Que te ocorre?
-É uma insatisfação... e um impulso que me corroe. É uma força que há dentro de mim que, se não o uso para correr pelo mundo, para mudar, para criar, para desenvolver minhas potências e possibilidades... vai fazer-me reventar.
-Mas vais assumir um grande risco, Orfeu, a mim me parece que estás querendo dar um salto para o desconhecido, para o vazio, a ver que é o que passa... e isso pode ser muito construtivo, te pode abrir novas portas... ou muito destructivo, podes-te perder ou perder o que já tens... e agora mesmo estás bem respaldado por teus pais e tens um trono te esperando.
-Sim, minha ninfa –suspirou ele-, mas como disse Quirão, os deuses não se preocupam por aquele que já tem pais seguros que o façam por eles. E se fico na segurança de meus pais já sê o que me toca: mais do mesmo até que tenha quarenta anos...
Desprendeu-se suavemente dela e deu alguns passos pela estância, como nervoso. Depois voltou-se, olhando-a de lado:
-Tenho algo a mais que te contar. Vai surpreender-te. É melhor tu te sentar.


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Horas mais tarde, abraçado ao corpo nu de Eurídice e sentindo ainda a cálida vibração de seus recentes jogos de amor, Orfeu recordava com grande agradecimiento a maravilhosa maneira na Eurídice lhe tinha mostrado que lhe queria como ele era, aceitando sem se alterar sua renúncia ao trono. Por isso se entristeció ao pensar o que ainda tinha que lhe dizer:
-Gostaria que esperasses por de mim, mas não posso te pedir que o faças.
-Por que não, meu amor? -respondeu ela mimosamente, se voltando para ele no leito e entrelazando os corpos de ambos.
-Porque não sê se poderei voltar, nem em que circunstâncias, nem quando: esta viagem irá por lugares misteriosos e selvagens, com povos muito primitivos, no extremo oriental de nosso mundo... as rotas, pouco conhecidas, o mar perigoso e traicionero, sempre cambiante; ademais, também as pessoas mudam, posso mudar eu, podes mudar tu...
 -Eu sou tu, Orfeu, mudarei sempre ao mesmo ritmo em que tu mudes. Como quando dançamos juntos, ou quando fazemos o amor.
-Somos muito jovens os dois, podem aparecer outras pessoas...
-Se aparecem, que apareçam e desapareçam; o nosso é bem mais forte.
-Posso morrer nesta aventura, Eurídice, ou ficar inválido!
-Se ficas inválido, juro-te que te cuidarei toda minha vida e que te amarei com a alma, se não nos pudéssemos amar com o corpo e a alma. Se morres, juro-te que te irei-te procurar ao País dos Mortos, Orfeu.
 

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