terça-feira, 13 de setembro de 2011

60- RETORNO À TRÁCIA

PARTE SÉTIMA:
RETORNO DO CAMINHO
……………………………………………

RETORNO À TRÁCIA    


Há muitas versões sobre o final da história de Orfeo, depois de sua saída dos Infernos. A maioria dos bardos dizem que ficou muitos dias como petrificado sobre a praia do Fim do Mundo, sem querer comer nem beber, desejando tão só morrer para regressar ao Hades com Eurídice.
Mas Hades não voltou a lhe abrir as portas, nem quis que as Parcas cortassem o fio de sua vida dantes da data marcada em seu destino... talvez decidiu que o melhor castigo por ter duvidado de sua palavra, de sua amada e de si mesmo no último momento, seria lhe fazer rumiar só, no mundo dos vivos, a vergonha e a dor de seu falhanço durante alguns anos mais.

O caso é que se diz que em um dia o viram reaparecer por Tracia, seu país, ainda conservando verdadeiro encanto, mas com os cabelos agrisados e com os sofrimentos passados marcados em seu rosto. Levava consigo sua lira e lhe acompanhava um muchachito loiro algo atrasado, com o cabelo muito curto, que ninguém sabia se era um filho seu, ainda que o tratava carinhosamente como tal, ou um huérfano vagabundo de poucas luzes, achado pelos caminhos, do que se apiadó.

Orfeo pôde perceber, então, a grande quantidade de tempo que tinha investido em sua busca, ao informar da atualidade e ao contemplar as enormes mudanças produzidas enquanto em seu país. Enquanto ele juraria que não passou mais que um par de noites na outra dimensão, quase toda uma geração tinha decorrido sobre a terra, e com ela passaram também para sempre muitas das pessoas por ele conhecidas em sua juventude: seus pais não estavam mais neste mundo, nem muitos de seus outros familiares e amigos, como cedo se foi inteirando.
Seu irmão reinava e o povo não parecia estar demasiado satisfeito com ele, já que, segundo ouviu, ainda que tinha começado muito bem, agora os gravava com impostos impopulares e com uma militarización e um controle excessivos.
O bardo deixou suas coisas com o rapaz em uma venda e subiu só a palácio, a saudar ao rei e aos parentes que lhe ficavam, que se puseram muito contentes de lhe ver e lhe brindaram sua melhor acolhida.


Tomando juntos os alimentos e as bebidas da hospitalidade, inteirou-se de que o antigo matriarcado já tinha sido derrocado plenamente em toda Grécia (ainda resistia algo em Tracia, ainda que a mãe de Eurídice, já tinha deixado o mundo e outra Alta Sacerdotisa a tinha sucedido) …e que os aqueos estavam preparando uma grande expedição contra Troya, a única concorrência comercial forte que se lhes opunha no Egeo. Tracia estava muito comprometida com seu rei, Príamo, que tinha sucedido a Laomedonte, por causa dos pactos jurados por seu pai, o rei Eagro, e pelo enlace de seu irmão com uma orgulhosa princesa troyana à que não amava. O atual soberano tracio não tinha mas remédio, sem vontades, que treinar a um grande contingente de tropas e que apertar o cinto ao povo para acumular e reservar uma grande partida do orçamento do estado, a fim de poder ajudar à defesa de seu rico aliado quando se produzisse a iminente invasão do Helesponto.
Micenas e Esparta instigaban aos demais helenos ao conflito, com vadios pretextos de honra ofendido convertidos em romances pelos vates. Ninguém lhos cria, desde depois, porque estava claro que o que realmente lhes interessava era controlar o importante fluxo de comércio que vinha do Mar Negro (aquele que o rei Eagro tinha desprezado em seu dia) e colonizar com gregos suas orlas.
A Orfeo não lhe pareceu estranho que alguns dos caudillos gregos jovens que se propunham marchar contra Troya fossem filhos de seus antigos colegas argonautas ou dos reis e príncipes amigos com os que se relacionou no passado: o principal campeão com o que contavam os aqueos se chamava Aquiles, e era o único de seus sete filhos varões que o argonauta Brigo, príncipe de Egina e atual soberano de Ptía, tinha conseguido arrebatar do sacrifício a sua esposa Tetis (a última suprema sacerdotisa pelasga que conservava o título de Hormiga-Rainha da Grande Deusa na Grécia). Conseguiu-o agarrádolo pelo talón e atirando dele para a vida quando já o resto de sua figura se estava diluyendo na dimensão dos imortais. Aquiles, convencido, cruel e prepotente, preparava para a invasão aos homens-hormiga, os disciplinados guerreiros mirmidones com os que seus pais tinham conquistado Yolcos.

Aquele filho adotivo de Laertes de Ítaca que ele tinha conhecido como um menino, quase parecia que tivesse sido ontem, que usava com acerto um arco maior que ele, Odiseo, já estava casado com uma princesa cefalonia, Penélope, e tinha fama de ser um rei mais astuto que seu pai, o famoso Sísifo de Éfyra. Também Néstor de Pylos, ainda que diziam que já se via maior, fazia parte da aliança. Junto com Diomedes de Argos e os fillos de Telamón de Salamina, Áyax o Grande e o famoso arqueiro Teucro, engendrado em uma princesa troyana cativa.

O que sim surpreendeu tristemente ao bardo e lhe fez se dar conta do rápido que tinha decorrido o tempo enquanto ele se encontrava no remoto Occidente, foi inteirar das mortes de duas queridos camaradas:


O primeiro, o comandante dos argonautas, Jasón. Depois de ter renunciado ao trono de Yolcos, reinou em Corinto, o reino herdado por sua esposa, a feiticeira colquídea Medea. Teve cinco filhos e foi feliz com ela até que a maga se empenhou em conseguir a imortalidade para os dois últimos pelos clássicos procedimentos matriarcales.
Isso causou um grave conflito entre ambos, provocando que deixassem de cohabitar juntos e que Jasón, ao cabo de um tempo, se pusesse a considerar a proposição do rei vizinho, Creonte de Asopia, um patriarcalista típico que lhe oferecia casar com sua filha Auge para unir ambos reinos, sem se preocupar de pensar sequer que Medea pudesse não estar de acordo.
Jasón decidiu tentar uma vez mais à fortuna: divorciou-se de Medea e, apesar de que seu direito ao trono só vinha dela, se dispôs a se casar com Auge sem renunciar à rica coroa de Corinto. A feiticeira, profundamente ofendida, simulou resignarse e submeter-se, mas só para que Auge aceitasse, como presente de casamentos, um belo camisón nupcial tecido por suas mãos. Assim que pôs-lho, consumiu-a em lumes, queimou a seu pai, a todo o palácio e bairros vizinhos, e inclusive aos dois filhos maiores que tinha tido Jasón de Medea.
Jasón conseguiu salvar-se e salvar a seu terceiro filho saltando com ele por uma janela, mas os habitantes de Corinto se quiseram vingar do devastador incêndio indo com paus e machados a por Medea, que conseguiu fugir. Ainda que, no meio do tumulto, enquanto lutavam contra seu guarda e serventes, mataram sem querer aos outros dois filhos seus com Jasón, os mais jovens, precisamente os que ela destinava à Deusa.
Medea, depois de algumas tentativas infuctuosos de recuperar Corinto, onde ninguém a queria, acabou regressando a sua Cólquide natal. Ali, por médio de outras intrigas não menos brujiles e enrevesadas, arrebatou o trono a seu tio e se casou com o rei de Mosquia, unindo ambos países baixo seu comando até agora.
Jasón, louco de dor pela morte de seus quatro filhos, perdeu o desejo de alimentar-se ou asearse e deixou-se invadir por uma depresiva amargura. Abandonou seu palácio e baixou ao santuário de Poseidón da praia, ante o qual tinha mandado varar o grande troféu de sua vida, o navio “Argo,” com o que em um dia partisse em busca do Vellocino de Ouro.
Baixo seu proa ficou sentado, recordando sua juventude, meditando sobre o efêmero da glória e os triunfos humanos, enquanto comparava tristemente os antigos tempos com os atuais, nos que todo seu ânimo e seu vitalidad pareciam descomponerse tanto como a madeira do “Argo,” que já se via cheia de carcoma. Ninguém podia escapar, por muito altas empresas que conseguisse coroar, ao último falhanço: o que chega para todos da mão da velhice e da morte. Mais alta a ascensión, mais profunda a queda.

Diz-se que Poseidón, seu protetor, apiadado de seu imparable dor, decidiu o livrar dele dantes de que envileciera sua alma de herói, e enviou um golpe de vento marinho que, ainda não sendo muito forte, provocou que o carcomido mascarón de proa da galera se desgajara definitivamente e caísse sobre o cráneo de Jasón, o matando de imediato.



O outro colega de Orfeo morto era nada menos que Hércules: depois de ter participado em dúzias de guerras e em um sem fim de combates individuais, depois de ter tido inúmeros filhos, todos varões, de inúmeras mulheres às que não tinha conseguido amar nem a metade que a Pyrene.
Mas em um dia se apasionó por uma princesa hermosísima que conduzia sua própria carroça na guerra como Atenea, Deyanira (secretamente filha de Dionisio com Altea, esposa do rei Eneo de Calidón). Tinha muitos pretendientes, ainda que todos, menos um, se saíram de em médio assim que ele lançou seu repto. Finalmente, o coloso teve que lutar contra o temível Aqueloo para ganhar a mão da princesa e o venceu.
Celebrando a vitória, casaram-se e viveram muitas noites de ardentes fusões. Jogando juntos o mais belo dos jogos, Hércules engendrou nela vários filhos e a sua única filha, Macaria, que era a luz de seus olhos. O errante guerreiro tinha-se convertido em um feliz pai de família, todo mel e doçura.
Mas seguia sem saber controlar sua força e provocando mortes de inocentes sem querer por causa disso.
De modo que viu-se obrigado a exiliarse de Calidón durante um ano para apurar-se. Seu amante esposa decidiu renunciar temporariamente às comodidades palaciegas que correspondiam a sua rango e, levando a sua menina em braços como a mulher de um vagabundo, se uniu a seu destino e a seu desterro.

Cada vez mais, Hércules rogava aos deuses que lhe libertassem de seu ego a fim de deter a roda de desoladoras repetições em sua vida. Sentia que precisava criar um vazio para que algo verdadeiramente novo chegasse a ela.

Uma manhã, os três encontraram-se na necessidade de cruzar o rio Eveno, que baixava torrencial e desbordado pelas chuvas. O homem-centauro Neso, que era muito forte, se achava na orla ajudando a cruzar sobre seus braços a quem lhe contratavam.
Hércules quis ocupar-se pessoalmente de cruzar a seu hijita e encomendou a Neso que levasse a Deyanira.

Mas assim que o centauro teve àquela beldad turbadora entre seus braços, voltou-se louco de lujuria, demorou-se a propósito em entrar na corrente e, quando o coloso já estava quase chegando à outra orla, jogou a correr com ela para o bosque em direção contrária, com a intenção de violá-la.
Deyanira gritou e Hércules, sem soltar a sua filha, conseguiu chegar a terra, pôs rapidamente uma de suas setas no arco e lançou-a com seu melhor puntería desde grande distância, atingindo ao centauro nas costas.
A ferida não era mortal e Neso ainda pôde correr um bom trecho bosque adentro, mas a seta estava envenenada com o sangue da Hidra de Lerna e o centauro sentiu que toda a sua se queimava por dentro. Dantes de expirar e de que seu matador aparecesse ao resgate de sua esposa, pediu ahogadamente perdão a Deyanira, confessando que sua beleza lhe tinha feito perder a cabeça e lhe oferecendo, para a compensar, um talismán mágico: disse-lhe que se guardava algo de seu sangue na pequena calabaza de viagem que levava para beber, a misturava com a água com que lavasse uma das camisas de seu esposo e conseguia que Hércules lha pusesse, também ele perderia a cabeça por ela e nunca jamais voltaria a olhar a outra mulher.
Deyanira, cujo tormento principal, apesar de toda sua inteligência, valor e encanto, eram os irrefreáveis ciúmes que sentia  cada vez que sua coloso era admirado por outras mulheres, guardou um pouco daquele sangue, a misturou com a água ao lavar a camisa preferida de Hércules, a bordou belamente e, assim que teve o primeiro motivo de desconfiança, lha ofereceu a seu marido como um presente de amor que ela enfeitasse com suas próprias mãos, em agradecimiento pela ter resgatado do centauro.


Hércules dispunha-se nesse momento a realizar um sentido sacrifício aos deuses na cimeira do monte Eta, para que lhe perdoassem as limitações de seu caráter e lhe ajudassem a canalizarlas construtivamente. Lembrou-se, justo naquele momento, das últimas palavras de seu maestro, o centauro Quirón, dantes de abandonar voluntariamente este mundo: “Não estejas triste, amigo meu, demasiado tempo tenho prolongado minha vivência neste plano. Mas chega em um dia no que há que renunciar aos apegos e se atrever a sacrificar a imortalidade do eu, para poder descobrir a imortalidade da Vida”
Sobre um altar de pedra, o coloso tinha preparado um grande montão de lenha; acercou as vítimas, lavou-se de maneira ritual e preparou sua camisa limpa. Assim que pôs-lha, a ponzoñosa sangue da hidra de Lerna (que misturada com a de Neso, contaminava, ainda que invisível, as fibras do tecido), ao juntar com o suor do herói, penetrou os poros de sua pele e ulceró imediatamente toda a superfície de sua carne, lhe produzindo uma quemazón terrível. Tentou arrancar-se a camisa, conseguindo tão só que grandes pedaços de pele se desprendessem com ela e que seguisse se queimando por dentro.

Ao final, não podendo o suportar mais, decidiu imitar a seu maestro Quirón e renunciar voluntariamente à vida com uma morte de guerreiro: prendeu-lhe fogo à pira de lenha e depois se tumbó sobre ela, pedindo aos deuses seu purificación e sua libertação total e definitiva.
O monte Eta esteve ardendo durante vários dias, igual que os Pirineos depois da morte de Pyrene. Deyanira, perseguida sem trégua pelas fúrias do remordimiento, acabou ahorcándose. Os sacerdotes de Zeus, Atenea e Apolo asseguravam que, depois de sua morte física, o coloso tinha atingido por fim um lugar entre as almas imortais e que agora era o guardião do Olimpo, não permitindo o acesso às dimensões mais elevadas a nenhum espírito que não se tivesse esforçado tanto como ele por superar as limitações que leva consigo a personalidade humana.


Depois de escutar estes relatos, Orfeo sentiu que era o último sobrevivente de uma intensa época já passada e julgada pela História. Não permaneceu bem mais tempo com seus parentes nem quis contar mais que vaguedades superficiais a respeito de suas longas andanzas pelo mundo. Também não interessou-se pelos cargos que lhe propunha seu irmão para que retomasse sua vida no corte segundo seu rango.
Em lugar disso, anunciou aos seus que desejava se retirar a viver como ermitaño e rogou que, se lhe queriam, respeitassem o que tinha decidido sem o discutir. Desejou-lhes de coração que fossem felizes, saiu do palácio e nesse mesmo dia tomou, com seu jovem parceiro, o caminho da montanha.

Instalaram-se em uma gruta do Rhodope, cerca da que tinha um bosque de velhos robles e castaños e uma escarpada garganta rocosa pela que se despeñaba um rio para um túnel subterrâneo com fragor. Protegeram, alçando um muro seco, a parte da entrada da gruta mais exposta aos ventos dominantes, ainda que deixando que entrasse toda a luz possível por acima. Não deixou Orfeo de ornar a parede transplantando a sua base um rosal silvestre trepador, planta que tinha para ele muita significação, o que deu um toque feminino àquela rústica guarida de eremitas quando subiu pelo muro e floresceu.

Enquanto fazia bom tempo cultivaban um huerto minúsculo, que no entanto, sobrava para lhes alimentar e para oferecer algo aos visitantes que não deixavam de aparecer, atraídos pelos maravilhosos concertos “em agradecimiento à vida e a seus dons,” que dava Orfeo a cada entardecer, sentado adiante de sua gruta e olhando para o enrojecido Occidente, acompanhado às vezes pelo muchachito loiro, que, apesar de ser quase mudo, não tocava mau a flauta.
Muitos bardos inteiraram-se de que o famoso Orfeo vivia retirado no Rhodope e foram subindo até ali para lhe escutar, para lhe levar alguma oferenda de coisas que não produzia, como azeite, sal, fruta ou roupas de abrigo, para lhe acompanhar a tocar ao entardecer, ou para aprender dele, escutando os ensinos que o bardo tinha recolhido em suas amplas andanzas pelo mundo.

Orfeo era muito afable e respondia com amabilidad às expectativas de seus visitantes, mas sempre esquivó o tema de sua suposta viagem aos Infernos e, por delicadeza, como viam que só mentarlo lhe afetava, ninguém se atrevia a insistir.
No entanto, não deixava de entrar em temas filosóficos tais como a realidade do ser e o problema da vida e da morte, sobretudo se era um iniciado nos mistérios de Samotracia ou Eleusis, ou simplesmente alguém que desejava peregrinar àqueles santuários, quem os sacava a colación. Diz-se que algumas de suas respostas foram anotadas por varios jovens ávidos de conhecimento, Um deles, chamado Museu, era quem subia a dialogar com ele com maior freqüência.  outro, cujo nome não ficou registrado, foi  o compilador do Glossário e Notas Órficas que acompanham este blog, para instruir a aqueles que tenham algo mais que simples interesse literário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário