terça-feira, 13 de setembro de 2011

62 (3)- AGLAONICE



AGLAONICE


Aglaonice estava fascinada pela extraordinária vibração de entusiasmo com a que a maestría de Orfeu tinha sabido elevar até os céus da emoção ao seu grupo. Ainda empregando a mesma música que ela, ele tinha-a enriquecido após só  uma audição, e sua segurança, sua carisma, seu virtuosismo criativo e seus múltiplos e sutís recursos sonoros estavam evidentemente bem mais desenvolvidos que os seus.
Imaginou no que podia converter-se sua comunidade de bacantes e sua obra espiritual com um colaborador assim ao seu lado. Ela tinha que ganhar-lho para servir juntos nàquela missão que a vida tinha posto em seu caminho: construir uma nova era na que a energia livre, informal e intuitiva da Grande Mãe, aliada à do olímpico Dionisio, voltasse a se situar no nível do qual tinham-a deslocado os deuses patriarcais... para suavizá-los, humanizá-los e construir uma sociedade na que a mulher recuperasse sua ascendência e sua autoestima e na que a força viril fosse canalizada ao serviço do Amor.

Orfeo viu vir para ele a Aglaonice, majestuosa na segurança do carisma que se desprendia da cada um de seus gestos e movimentos. Portava com elegancia uma copa de madeira olorosa finamente talhada e um odre de vinho. Pôs-lha diante e encheu-a. Com ela na mão, se acercou ao rosto do bardo e, o olhando de soslayo com seus olhos feiticeiros de esmeralda, bebeu ante ele um sorbo demorado, que lhe serviu para entornar as pálpebras e redondear os vermelhos lábios, como sem querer, em um gesto audazmente erótico e provocativo. Depois de aliviá-lo com uma de seus frescos sorrisos, dirigiu a ele ambas mãos estendidas:

-Bebe de minha copa, Orfeo –convidou-, comulguemos juntos, já que a ambos nos anima o mesmo espírito de Dionisio. 

Orfeo recebeu-a, fez um brindis com um gesto e acercou-a a seu nariz, mas não bebeu, porque o fazer seria aceitar um compromisso que sentia como demasiado explícito. Baixo o aspecto regiamente feminino daquela mulher, intuía o espírito de um guerreiro durísimo, dominante e manipulador, uma verdadeira amazona, uma poderosa aranha tecendo sua teia. Simplesmente fez-lhe honra ao convite, deleitando-se em olfatear o aroma do vinho.


-Acho que a ti te anima Dionisio bem mais que a mim, sacerdotisa -disse com um sorriso-. És uma mulher muito bela e uma extraordinária flautista. Mereces bem mais que o pouco que eu poderia compartilhar contigo. Faz favor, não te ofendas comigo e considera-me teu amigo. 



Ela ocultou sua decepção atrás de um sorriso artificial e recolheu a copa de suas mãos.
-Se não te apetece beber, eu farei-o e pelos dois.
Bebeu um longo gole. Depois deixou-a a um lado, olhou-o seriamente e disse:
-Em verdade és um grande mestre. Admiro a altura de tua arte e sento-me muito contente de ter-te conhecido, perdoa minha atrevimiento. Sim que gostaria cultivar de tua amizade e vir alguma vez a fazer música contigo.
-Não há nada que perdoar, teu atrevimiento alegra meu coração bem mais que o vinho; considera em tua casa e vêem a ela quando queiras. O mesmo digo para teus acompanhantes.

Tomou sua mão e a besó, depois pôs-se em pé e pegou sua lira. Falou alto, para todas as bacantes:
-Estou cansado e desejo retirar-me, dou-vos de novo as boas-vindas e as obrigado por vossa visita, belas senhoras; continuem com vossa festa e que sejais sempre assim de felizes, para felicidade dos demais. Meus amigos vos dirão onde podeis dormir, se quereis vos ficar. Boas noites.
Depois entrou na gruta e ao cabo de uns minutos saiu, carregado com uma manta, e perdeu-se entre as árvores do bosque.



Decorreu uma semana, Aglaonice não podia deixar de olhar sem desgosto para a alta cume do Rhodope desde a janela de sua casa no vale do rio Hebro. A cortês rejeição de Orfeo a sua torpe precipitação tinha ferido a fundo seu peito, que passava por todo tipo de violentas emoções, desde a ira até a autoconmiseração.



Olhou-se ao espelho e não gostou. Houve uma época em que ela tinha que tirar de acima aos muitos homens que a desejavam, e com muitas menos considerações. Mas o passo do tempo era implacável, seu antigo poder de sedução parecia já não lhe servir senão para comandar uma tropa de mulheres sozinhas, carentes, decepcionadas por múltiplas relações insatisfactorias com homens rutinarios e vulgares, aterrorizadas porque sua juventude e sua beleza começavam a se murchar, que se amparavam na religião da liberdade e a alegria para poder desamarrarse de seu vazio e de sua baixa estima na sagrada embriaguez e na cobertura anímica que presta a manada.

Voltou-se a olhar, ensayando gestos, poses, sorrisos, máscaras “Calou-te fundo esse músico, Aglaonice, não podes deixar de pensar nele. Maldita estúpida, como me lancei como uma louca... terei que regressar lá, com outra atitude. Não posso sacar ele do coração, tu vais ver quem sou eu, Orfeo –começou a desfazer seu penteado-. Talvez uma imagem diferente...” 


As ménades chegaram pouco antes do meio dia ante a grota. Desta vez eram só três: Aglaonice, outra mulher algo maior que ela e metidita em carnes, de mirada profunda e inteligente, que disse se chamar Metis, e outra mais jovem, com um corpo fino e flexível de danzarina e cara de estátua, um pouco inexpresiva, Hebe. Traziam flautas frigias de duplo tubo as três, algo de comida e bebida e um hatillo com uma muda de roupa limpa envolvida por um manto. Mas agora, a pleno dia, não pareciam as mesmas da primeira vez, senão três modestas estudantes de música que vão visitar a um professor. 

Vestiam túnicas brancas de verão até o joelho, calçavam sandalias de fitas, não levavam mal adornos, seus enfeites eram discretos e comportavam-se de uma maneira afável, mas tão pasiva e recatada que Orfeo e as duas pessoas que lhe acompanhavam -o mudinho algo atrasado que vivia com ele na grota e aquele outro efebo de cabelo longo e encaracolado que costumava tomar notas, chamado Museu, quem passava uns dias na casa de hóspedes- se fizeram mais amáveis e acolhedores do acostumado, para as fazer sentir entre amigos, a gosto, e para convidarlas a se expressar com a mesma espontaneidade que antes.
Quando recriou-se um bom clima de simpatia e fraternidad, Aglaonice disse que se tinham atrevido a trazer alguns platos de boa comida caseira para compartilhar e que gostariam muito passar de uma tarde tranqüila no monte, escutar outra vez a Orfeo, se fosse tão amável, tocar juntos e aprender algo dele.
Almoçaram, pois, em grupo sobre a erva, unindo a salada que tinham preparado para eles com os platos cozinhados pelas visitantes, que estavam muito bem apresentados e que sabiam verdadeiramente deliciosos. Bebeu-se vinho de uma maneira normal e moderada e em todo momento conseguiu-se um clima de amistosa e ligeira harmonia de grupo.
Após a refeição, o mudinho foi lavar as panelas e os demais ficaram conversando cordialmente, tumbados baixo a sombra de uma encina. O rapaz do cabelo encaracolado, Museu, era muito simpático e contou sabrosos chismes mundanos da capital de onde procedia. Como suas duas colegas estavam muito a gosto com ele, Aglaonice foi criando, pouco a pouco, um aparte com Orfeo.



-Foi impressionante –disse, com os olhos brilhando de admiração- como tu conseguiste elevar a vibración de meu grupo a outra noite Qual é o segredo de tua maestría? -Nenhúm segredo -respondeu ele sorrindo-: amor pelo que faço, gustoso trabalho, estudar e ensayar até que a lira ou a flauta em minhas mãos se voltam eu mesmo, me estudar e me esvaziar até que eu mesmo torno-me a própria música se tocando a si mesma, e depois a deixar fluir até onde ela queira.
-Assim de singelo... nada mais? -disse Aglaonice rindo com ironía- Todo mundo pode!
-Em realidade, todo mundo pode, creio eu –disse ele-, a cada um a sua maneira, cultivar e desenvolver até extremos muito elevados seus próprios talentos e tendências innatas: basta com saber, querer, ousar e calar, como sempre.




--Saber, querer, ousar e calar? -repetiu a sacerdotisa- Isso é um axioma hermético.

-O é, muita gente conhece-o, mas há que o aplicar –disse Orfeo-. Saber o que queres conseguir, o querer conseguir com muita vontade; ousar pôr toda tua concentração e todo teu esforço em isso de forma constante, a fim do tentar dia depois de dia; e fazer calar às constantes dúvidas, ansiedades, vacilações, sentimentos de impotencia ou de carência, queixas ou vaidades de tua ego, para seguir tentando-o com fé, como se já o tivesses conseguido dantes, até que em qualquer momento, inesperadamente, o consegues, igual que temos conseguido aprender a nos pôr em pé e a andar.



-Eu quero e ouso com força –cintilaram os olhos femininos-. O difícil para mim é calar, fazer calar às dúvidas, fazer calar à vaidade: insuficiência e prepotência.

-Esse é o balanço para os extremos que sai facilmente de todos nós, amiga, ficar curto, passar... a harmonia está no médio, não parada, senão dançando entre os extremos –confirmou ele-. Se dúvidas, lhe faltará a tua melodia a fluída brillantez da segurança, se passas de confiança egoica em ti mesma, resultará pesada e não alçará vôo. Precisa-se sair da roda do sobe e baixa, pôr-se acima de sua vaivén. Há que dirigir o vaivén da balança desde seu centro mais elevado, desde o fiel. E não desde um dos platillos ou o outro. Desde os platillos é impossível manter um movimento equilibrado.


-E isso como se faz?
-A mim me serve uma maneira, às vezes –respondeu o bardo-: rendendo a direção de meu jogo a meu centro mais elevado.
-
Já o faço eu também. Meu centro mais elevado é Dionisio. Todas as dúvidas de minha razão se dissipam nele.
-Eu tenho a suspeita, e espero que me perdoes -disse Orfeo suavemente-, de que Dionisio é um centro elevado, mas não precisamente o do fiel, senão o de um dos platillos: o da espontánea emocionalidad subconsciente. O centro elevado do outro platillo é Apolo, a sábia consciência intuitiva.

-Quem te parecerá então que sujeita o fiel da balança de onde pendem ambos? -disse Aglaonice desafiante- A Deusa?... ou Zeus?
-A Deusa e Zeus são os dois braços que sustentam os platillos. Também não são o fiel -respondeu o bardo-. Se queres pôr uma divinidad conhecida ali e não a teu próprio ser real diretamente, eu acho que poderia ser Atenea, que é a inteligência criativa de Zeus, e uma síntese, actualizada, dele e da Deusa, na que todas as qualidades femininas e masculinas, lunares e solares, conscientes e inconscientes, se fundem em uma supraconsciencia equilibrada, potente, bela e ativa.



-Não me inspira devoción nem confiança essa virgen orgulhosa com alma de homem. Fico com a Deusa e com Dionisio, que é o mais feminino dos deuses-. Afirmou com força Aglaonice
           

Orfeo deu-se conta de que ela se tinha atrincherado em uma posição fixa e renunciou a seguir discutindo por causa dos muitos símbolos superficiais do Único. Teve um silêncio. Ao cabo, Aglaonice perguntou-lhe se após ter viajado tanto, não se aburría de permanecer em uma gruta, naquele rústico lugar.

-Realmente não –contestou sorrindo-; qualquer lugar pode ser o centro do universo, se um sente a vida do universo nele... Não a sentes tu nesta montanha?




Aglaonice olhou em seu torno, alçando o peito -Claro que a sinto!... este lugar é um templo puro e sagrado da vida. 

-O mundo todo o é -respondeu ele-, mas nas montanhas se sente mais forte, mais puro. Quando eu viajava, tentava andar pelas montanhas ou regressar de vez em quando a elas, para recargarme. Esta montanha resume em si todos os lugares onde mais a gosto me senti em minha vida.


-Mas tu tens vivido aventuras e conhecido a muitas gentes muito interessantes Não jogas isso de menos?

Não, porque o vivi a fundo e porque sou livre para deixar as poucas coisas que aqui tenho e buscar o desconhecido de novo, se o desejasse... ainda que já não seria o mesmo, porque a cada idade tem seu próprio jogo e seus próprios reptos... Quanto às pessoas interessantes, não faz falta sair de aqui para as encontrar; já vês, tu tens chegado por teu pé a esta montanha e és uma pessoa interessante.

Ela se sentiu feliz, mas disimuló, tinha que ir devagar.
-Orfeo, eu sou uma pessoa muito vulgar, me refiro a essas gentes distintas que sabem apreciar verdadeiramente tua arte e o agradecer, que o podem aplaudir e recompensar como se merece Não é um desperdicio, para um músico de tua talha, viver assim, retirado? O mundo poderia estar a teus pés. Poderias ter quanto quisesses.

           -Aglaonice, para que esse mundo do que falas esteja a seus pés, um artista tem que pôr aos pés desse mundo, e quantas mais coisas possui uma pessoa, mais essas coisas o possuem e chupan sua energia. Se eu tivesse que deixar minha gruta agora, encontraria em seguida outra, em todos os montes as há. Se perdesse minha lira, cortaria madeira e em pouco tempo me faria outra; e em qualquer monte encontram-se, também, água e alimentos... Prefiro minha liberdade atual a viver em uma jaula de ouro na cidade, pendente de competir, de destacar, de mostrar-me e de manter os cambiantes favores do público e das modas.
-Mas um artista deve-se a seu público -insistiu ela- Pára que te deram os deuses esse talento? para só te escutar a ti mesmo, como um lobo solitário aullando no monte? Onde está tua utilidade neste mundo?




-Talvez os deuses não estão tão descontentamentos comigo –sorriu o vate-. O tempo todo estou cantando e tocando para as diferentes caras do Ser Universal que eles representam, canto dando obrigado pela vida e em honra a ela, canto para os deuses que residem nas gentes amadas e amigas que vivem comigo ou que vêm a me visitar, e canto para os deuses que me inspiram em meu interior e que me fazem sentir feliz e útil me inspirando e me ouvindo interpretar o que me inspiram.

Ela ficou sem saber que dizer “Oh, me encanta como és, Orfeo –pensou- és exatamente o tipo de homem com o que poderia me complementar para exteriorizar o melhor de nós dois ao serviço de nossa missão... só precisas que alguém te ajude a descobrir a melhor maneira de aplicar teus dons e tua força ao que esta época nos está pedindo...”





-Gostarias de encontrar uma maneira –perguntou-, na que tua música servisse para melhorar o mundo?
Ele voltou a sorrir e disse docemente, como quem fala de outra coisa:
-
Aglaonice... a mim me parece que tudo neste universo é a mesma energia vibrando no movimento rítmico que cria a vida universal... e que todas as expressões da vida dos seres, todas, influem sobre essa vibración e marcam seu tom, também a tua e a minha. Mas, ademais, todas aquelas expressões criativas que são conscientemente armónicas elevam ao máximo a beleza e o goze da sinfonía coletiva dos seres que conformam o ser do cosmos... e a boa música eleva-a mais e melhor que qualquer outra forma de expressão...
-... Excepto a expressão pura do amor-, arguyó Aglaonice.
-...Que também pode se expressar com música! -respondeu Orfeo rindo–... De modo que não desprezes, amiga minha, a utilidade, para o mundo, de um humilde músico que vive e toca retirado. Ele pode ser um sacerdote da Vida.
-Um sacerdote de Dionisio...- reconheceu ela, apreciativamente.
-Evoé! Mas Dionisio, para mim, Aglaonice, sendo uma expressão muito querida da Vida, um arquetipo de pura liberdade e alegria, não é mais que uma das múltiplas caras do deus que há por trás de todos os deuses. Não fico só com essa, às vezes preciso cantar à virtude luminosa e equilibrante de Apolo, ou à disciplina firme e decidida de Marte, ou à racionalidad ágil de Hermes, para não me ficar na pura esfera dos impulsos instintivos ou subconscientes... Todas as caras de todos os deuses são necessárias para que nós configuremos, misturando segundo nossas necessidades, a imagem do deus interior que, na cada momento, nos liga com o todo e dirige nosso rumo pessoal... Há vezes em que, inclusive, preciso lhe cantar a Hades.

-Hades? Esse é um deus de quem a maioria da gente prefere nem se lembrar -disse ela aprensivamente- Pára que lhe cantas?

-Para poder desfrutar mais e melhor da vida efêmera do corpo e da mente, neste único momento real em que ainda os tenho ligados a todo o que sou... A meu parece-me que Hades é o grande recordador da realidade, amiga.
-Por que?
-Porque pensar nele me centra no importante quando vêm a mim as preocupações... poucas das coisas que nos preocupam aparecem como importantes se um pensa que dentro de uma hora poderia perder seu corpo. Acho que aquilo no que eu usaria essa última hora, é o único verdadeiramente importante para mim.
-Eu a usaria para amar, Orfeo, para me dar toda, para me perder, para entrar no para além com toda minha consciência diluída no êxtase do amor... –disse a sacerdotisa com toda paixão- Em que a usarias tu?


Orfeo ficou pensativo um momento, como se estivesse concentrado em uma lembrança muito, muito profundo.
-Eu já tive essa experiência uma vez e o que mais almejava era precisamente isso: poder apagar minha tensa atenção, perder-me, diluir minha consciência vigilante no êxtase do amor e do reencuentro... e que fosse o que fosse depois... isso era Dionisio falando em mim. No entanto, uma voz mais forte animava-me a manter-me alerta, alerta, bem consciente, para poder acabar o começado. Aquela voz me urgía, com o maior ahínco e em nome do amor, a seguir acordo e ligado com meu objetivo até justo o instante final, agüentando o desejo de apagar e diluirme... essa era a voz de Apolo em mim.
-...E a qual das duas vozes fizeste caso? -perguntou Aglaonice. 


Antes de que Orfeo pudesse lhe contestar, seu diálogo foi interrompido por seus três colegas de siesta, que lhes propuseram alegremente ir tomar um banho à cascata. Levantaram-se pois, uniram-se a eles e começaram a caminhar atentos, agora, a qualquer outro assunto do que o grupo estava falando.

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