terça-feira, 13 de setembro de 2011

62 (1)- AS MÉNADES

 AS MÉNADES

Certa tarde do começo do verão, quando Orfeo acabava de terminar uma canção em frente a um coro de oito rapazs que estavam passando em uns dias na casa de hóspedes, se ouviram músicas alegres subindo pelo caminho da montanha. 
Aguardaram expectantes, até que viram chegar uma procissão multicolor de duas dúzias de mulheres adultas muito ligeiras de roupa, com flautas, caramillos, panderos, címbalos e tirsos enfeitados com fitas, além de cestas de comida e odres de cerveja e vinho. 




Caminhavam a passo de dance, muito contentes e excitadas, com coroas de flores e folhas de hera enfeitando suas frentes. Estavam suando pelo esforço da subida e tinham as bochechas enrojecidas pelo muito que tinham dançado e pelo bem mais que tinham libado.

Saíram do caminho e despregaram-se em semicírculo ante a gruta, sem deixar de brincar e lançando o grito sagrado de seu deus:
-Evoé! Evoé!
-Evoé! -repetiu Orfeo desde seu lugar, com um sorriso de boas-vindas, saudando com a lira, o que fez que todos os rapazs o imitassem. 

Eram as ménades, ou devotas de Dionisio, também chamadas bacantes em honra ao deus do vinho e da alegria sem travas. Seguramente tinham passado no dia festejando juntas em algum bosque ao pé da montanha até que, pela tarde, se lhes ocorreu subir a conhecer ao famoso aedo do que tanto se falava.



Uma delas se destacou do grupo, alçando em um gesto de comando uma bengala ritual que luzia em sua arremate uma piña, o tirso báquico, com o que deteve a dança, enquanto portava um grande ramo de flores silvestres recém cortadas no outro braço. Ainda que fazia tempo que já não era uma jovenzinha, tinha toda a fragancia sensual de uma rosa madura e experiente. Suas formas eram, ao mesmo tempo, exuberantes e felinas, ressaltadas, mais que veladas, por uma curta túnica de pliegues cor veio tinto, a qual deixava ver umas pernas muito belas e fazia jogo com seus vermelhos lábios, seus arrogantes olhos verdes e seu cabellera morena que, amarrada no alto de sua cabeça, se derramava como um surtidor sobre seus ombros.


-Evoé, Orfeo! -gritou, saudando por seu nome, como a pessoa a quem considerava mais importante do grupo, enquanto todas suas colegas, ante seu gesto e seu saúdo, permaneciam quietas e atentas– Me chamo Aglaonice e falo em nome destas, minhas irmãs, as ménades do vale do Hebro. Após tanto ouvir a respeito de ti a tantas pessoas que repetem tuas músicas e teus poemas, vimos a render nossa homenagem ao mais famoso dos aedos -.E avançou até ele com um sorriso encantador, estendendo em leque um ramo de flores silvestres a seus pés.

Orfeo levantou-se em seguida, sonriente, e agradeceu com um beijo na cada uma de suas bochechas. Recolheu uma flor do ramo e ofereceu-lha. Depois tomou flores a punhados e foi-lhas arrojando a todas as mulheres do grupo.


-Sejam bem-vindas, formosas damas! Obrigado por vossa visita a este humilde lugar, ao que iluminais com vossa alegria! Evoé! Que siga vossa festa!


Imediatamente, a líder de olhos verdes, Aglaonice, alçou o tirso de novo, fincou-o de uma vez sobre o centro do terreno, como faz um conquistador com seu estandarte, e tomando, ato seguido, uma flauta frigia de duas tubos, deu o sinal de arranque às músicas e danças do grupo feminino.
Iniciando seus sones com uma clara, fresca, bela e entusiasta chamada à atenção de todos, mostrou o núcleo estrutural da melodia, despregando a seguir, em uma sinuosa rede de agilísimas repetições e variações em todos os tons, um sem fim de giros a cada vez mais intensos e vertiginosos, de acima abaixo das escalas audibles, acompanhando sua penetrante música com gestos e ondulaciones de todo seu corpo, enquanto levava o compás com os pés, luzindo suas formosas pernas no movimento, ao mesmo tempo em que conseguia envolver a todos de uma maneira sensual, serpentina, carismática e vibrante, que ressoava profundamente nos plexos ventrales de toda a audiência, que cautivaba, que fazia hormiguear os pés e as caderas, que punha em marcha até ao mais apático.
Todas suas colegas começaram a se agitar e, ao pouco tempo, estavam girando em um alegre e libérrimo torbellino ao redor do enhiesto tirso de Dionisio e da flautista, totalmente possuídas pelo espírito da espontaneidad, deixando que suas subconscientes individuais se exteriorizaran sem a menor trava, gritando e aullando de alegria, até que se apagaram a razão e as preocupações presentes, se fundindo mentes e corpos em um inconsciente coletivo e grupal que as projetava a um tempo remoto, arcaico, prehistórico, entrañable, que, apesar de tanta civilização, estava animando o tuétano de seus ossos desde fazia milênios.
Aglaonice sabia transportá-las à Orgía de Lua Cheia ao redor da fogueira tribal, a um tempo de pura, selvagem e traviesa inocência, à infância feliz e irresponsable da espécie. Orfeo pôs-se a dançar com elas com vontade e animou com palmadas e sorrisos a que também o fizessem seus jovens amigos, ainda que nenhum deles, envarados pelos complexos da adolescencia, conseguia se soltar com tanta liberdade nem se integrar tão bem como ele à esencia fluyente e incontenible das danças dionisíacas e ao desenfado picante que aquelas mulheres mostravam, amparadas pelo caráter de seu próprio grupo. Cedo as ménades comprovaram que se encontravam junto a um dos seus.
Dança-las seguiam a plena energia enquanto a gente teve forças para isso, enquanto circulavam as copas, com as que se fizeram, mal reduzindo um pouco a marcha, repetidas libaciones rituales de cerveja de hera, até que o sol começou a querer ocultar depois das cimeiras acendidas. Nesse momento, aproveitando um sudoroso e jadeante descanso da flautista e seu grupo, o vate tomou sua lira. Sentando em sua rocha habitual, repetiu o núcleo melódico de Aglaonice e, improvisando ao princípio sobre seus compases, enlaçou desde eles, com sua voz mais cautivante, um hino frigio a Dionisio.

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