terça-feira, 13 de setembro de 2011

62 (5)- A FESTA DO DESENFRÉIO




A FESTA DO DESENFRÉIO


Nas cerimónias dionisíacas Aglaonice liderava com brío ao  seu grupo de bacantes na intimide secreta dos bosques, durante as quais, após ingerir uma mistura de cerveja de hera e diferentes hongos visionarios, cantavam e dançavam dando renda solta ao instintivo, até entrar em um jogo no que tudo estava permitido.

 No momento de maior embriaguez, as ménades descuartizavam vivos alguns animais selvagens, salpicavam-se umas a outras com o sangue, pasando-se  de mão em mão os despojos, enquanto riam e riam e se abraçavam, tiñéndose de vermelho, os rasgando crus a dentelladas sem lhos engolir, para provocar o afloramiento das identidades mais arcaicas do próprio ser à mente superficial, desde as profundezas abismais daquele subconsciente coletivo onde a Deusa tanto era dadora de vida como dadora de morte.



Era uma evocação das cerimônias mágicas das antigas matriarcas na passada Idade de Pedra e uma reação de rebeldía contra o Império do frío Mental-Intelectual, da impositiva Razão Apolínea trazida pelo Patriarcado, cerimónias vedadas baixo pena de morte à contemplación dos homens, excepto àqueles iniciados de toda confiança que aceitavam travestirse para viver femininamente os sagrados mistérios da Grande Mãe, nos que as sacerdotisas se entregavam ao espírito de seu divino salvador, Dionisio, o eterno menino deus que todos levamos dentro, para viajar às dimensões profundas do ser, cavalgando o trance induzido pelo vinho quitapenas e as plantas de poder.
Dançavam cheias de místico entusiasmo por sentir a fusão com o infinito, abertas a ser fecundadas e inspiradas lucidamente por seus próprios mestres interiores, os espíritos da natureza, a quem a mulher sempre esteve mais próxima que o homem; os sábios e amorosos aliados e guias astrales, as serpentes de sabedoria oracular que tinham ensinado às primeiras recolectoras a arte e a ciência de se fazer semelhantes à Deusa.







No mais intenso do turbilhão e de costas à fogueira, coberta com uma pele de loba e rodeada de perfumados vahos de incienso da Síria, Aglaonice dirigia com sua flauta e seus movimentos a todos os demais instrumentos de vento, desenhando uma sinuosa melodia espiral sobre a noite, a contrapunto do retumbante compás circular que marcavam os panderos, enquanto ao redor dela e do fogo rondaba freneticamente o embriagado coro de mulheres vestidas com longos peplos de muitos pliegues, que deixavam os muslos ao descoberto ao dançar. 


Giravam recubiertas de moteadas peles de corza, coroadas suas cabeças de heras e culebras, brincando e aullando na ampla roda, seguidas de suas soltas cabelleras e de suas sombras projetadas, tal como se os seres invisíveis da floresta estivessem participando com elas em sua dança remolineante, dança na que as energias individuais da cada uma delas se convertiam em uma sozinha sinergía multipotenciada de excitação orgiástica que ligava de forma ascensional com o inefable, com a fonte subconsciente da alegria mais simples e mais vital, sem fréio nemhum.

Era a terapia catárquica do desvarío provocado, aceitado e gozado de comum acordo, da subversión da normalidade, da sub-realidade, da volta à infância lúdica da espécie. Era uma terapia sagrada que tinha a virtude de desencadear das culpas do passado e das preocupações do futuro, que as punha integralmente no presente instantáneo, aqui e agora, a plena intensidade de sentimento, na única realidade sensível... Que transmutaba todas as tristezas e nostalgias, que proporcionava uma família e uma religião comprensivas e cúmplices às almas solitárias, que fazia sentir prazer e poder no delírio da agitación caótica e da gargalhada liberadora... Que desordenaba os esquemas habituais, que apagava por uns momentos a voz tirana da lamentosa razão quotidiana, aquela que proclamava machaconamente a insulsez e a mediocridad da existência, especialmente por ter que viver em um mundo no que as mulheres perdiam a cada dia maiores parcelas de poder. Suas avós estariam envergonhadas delas, se o vissem.
Elas eram a ativa resistência de um milenario império da intuición feminina contra o quadriculado estilo de pensamento, a vulgaridad e as insufribles limitações que os gregos estavam trazendo ao mundo. Juntas, organizavam ruidosas protestos, e até destrozos, contra qualquer ofensa a seu gênero, contra os extranjerismos, contra as modas helénicas, contra qualquer tentativa de reformar e corromper a ordem e os valores que, desde sempre, sustentavam a harmonia da vida. Inclusive tinham recorrido às vezes à violência, humilhando ou apaleando a homens conhecidos como maltratadores. 


Elas eram o espírito de dignidade de seu sexo enfrentado àquele rudo e crescente machismo que só a coação das espadas e os paus sustentava, e que pretendia rebajar e degradar sua condição. Elas eram a família promiscua e tribal de sempre, construída livremente sobre as afinidades espontáneas do coração, enfrentada ao rígido modelo de unidade familiar monogámica que os aqueos tratavam de impor e que já tinha contagiado a tantísimos homens tracios, que a cada dia estavam mais rebeldes à sagrada tradição e que pretendiam as tratar como se fossem gregas. Enquanto elas seguissem dançando, a Deusa seguiria viva em Tracia.




Aglaonice, sempre no centro, deixava às vezes a flauta e elevava sua bengala-batuta, o tirso, enfeitado com atiras brancas de lana, que dirigia a cada mudança de tempo na cerimônia, acompanhando seu gesto com um selvagem bramido, o grito ritual que excita e anima, que era imediatamente obedecido. As bacantes giravam para um lado ou para o outro com perfeita sincronía quando ela o marcava, aumentavam sua velocidade como se voassem, ou ficavam imóveis como estátuas um instante, para seguir quando ela dava o sinal.

Ninguém como as mulheres para se pôr de acordo, perfeitamente harmonizadas, se eram dirigidas com graça e com firmeza desde o coração e desde o ventre. Em seu imaginación operativa, a Sacerdotisa Mãe sentia ligados a sua cintura todos os cordões umbilicais de seus ménades e as convertia em uma grande roda generadora de pura energia de sanación psicológica. 

Fazendo-se antena, raiz, fonte inspiradora, diretora de orquestra e dança, espelho e canal distribuidor de todas aquelas vibraciones de libertação que passavam através dela como de uma ponte e que lhe faziam sentir seu próprio poder e utilidade, imaginava como poderia chegar a crescer aquela força, como chegaria a influenciar e a contagiar às massas, no dia em que tivesse ao magistral príncipe Orfeo a sua disposição, como apasionado amante e perfeito complemento de seu carisma por uma parte, e como inspirado, inspirador e fascinante sacerdote-músico de Dionisio pela outra, para maior glória da Grande Deusa.


Cuidando de não deixar seu objetivo em mãos da casualidade, Aglaonice não duvidou em recorrer à Magia como reforço da consecución de seus desejos. A Magia da mulher, que criava a vida, também servia para criar qualquer outra coisa. Em um bosque frondoso às orlas do rio Hebro achava-se seu lugar de poder e o velho e forte árvore com o que durante muito tempo se tinha identificado e hermanado. Enfeitou-o com cabelos soltos e com pequenos objetos pessoais que tinha sustraído ao bardo e praticou nele e sobre eles, impregnándolos de seus próprios fluídos, as mais poderosas hechicerías que conhecia, a fim de que chegasse a se sentir louco por ela, que a visse como a mais bela e deseable das mulheres e que se estabelecesse entre ambos uma ligazón indestructible.





Durante muitas luas recolheu o sagrado orvalho, o asperjou com conjuros sobre seus amuletos e foi reforçando com sua concentração, muitas vezes em trance, e alimentando com sacrifícios e ritos, a semente astral do semeado na árvore, a fim de que fructificase no plano físico e no ciclo mais propício, depois de uma boa gestación.

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