terça-feira, 13 de setembro de 2011

52- O HOMEM DO CARVALHO

O HOMEM DO CARVALHO

Como tinha dito a sacerdotisa, assim que o tracio rebasó o roble solitário e a enorme rocha que protegia do vento uma singela cabaña de pedras e palha, se encontrou ao “Homem Do Carvalho”, sentado sobre um parapeto e envolvido em uma manta, contemplando a beleza da alborada.
Permaneceu a uma verdadeira distância em silêncio, para não lhe interromper, ainda que sentindo que já se tinha dado conta de sua presença. Estava seguro de que aquele homem percebia perfeitamente quanto pudesse suceder em uma grande rádio ao redor de si, com só atender à vida a metade de concentradamente que a estava atendendo agora.

No país dos Gal, a sombra era pesada, úmida, ventosa e gélida, pelo que a alva entre nuvens e nevoeiros deslizantes se sentia, bem mais que no Mediterráneo, como um verdadeiro renacimiento da natureza, brilhando a cada folha à nova luz, toda perlada de orvalho em seu meio, que a vivificaba e lhe dava calor de forma tênue, gerando vapores de fragancias úmidas que se elevavam no frescor da manhã, tal como ascende a fumaça do incienso em um santuário.
Ao outro lado da baía, entre ligeiras brumas evanescentes, distinguiam-se vários islotes alongados a pouca distância da costa, logo as brancas e longícuas praias e, depois delas, se alçando de repente em uma enorme mole que enchia o horizonte, as cimeiras redondeadas daquela sierra do Pindo que, desde o princípio, lhe tinha parecido uma morada de deuses e que agora semejaba uma colmena rosada e gigante a ponto de reventar, por causa da ingente luz que se acumulava por trás dela, enquanto a Terra se abria para parir ao novo sol sobre um mundo detido em expectante silêncio.
O “Homem Do Roble” levantou-se devagar, voltou-se ligeiramente para ele e o convidó, com um leve gesto, a que viesse a pôr a seu lado, uns passos a sua direita. Orfeo deixou suas coisas em terra e fazer, saudando ao tempo com uma inclinação de cabeça. O respondeu sorrindo com a mirada, e imediatamente voltou a concentrar no sol, que estava a ponto de assomar sobre a mola central do Pindo.
Relajó todo seu corpo e abriu suas pernas e as palmas de suas mãos, as separando um pouco dos muslos e o bardo o imitou. Se relajó ainda mais, flexionando um pouco os joelhos e alçando a cabeça com uma inspiração profunda, completa e pausada e com os olhos abertos, fixos sem pestañear no disco ígneo, que iniciava seu desprendimiento do mundo subterrâneo.
Orfeo centrou-se em sua própria receptividad sensível como se fosse a primeira vez que contemplava um amanhecer. O primeiro que chegou a ele foi o limpo frescor do novo dia, o segundo a majestuosa beleza e luminosidade do motor da vida, que, à medida que ascendia lentamente, fazia mudar de cor a toda a paisagem, ao mesmo tempo em que bullían dentro de si todos seus líquidos biológicos, como se os fizesse burbujear o tênue calor que dava deleite a sua pele. O primeiro raio do sol chegou até eles como uma bênção, se estendendo de um sozinho impulso até o último rincão do interior da gruta que tinha depois da choça do ermitaño.
O terceiro foi o som: o silêncio abriu-se em tênues piares de pássaros, rumor de ribeiros, as ondas longínquas, a brisa. Até o lento deslocar das nuvens tornasoladas ao pé do Pindo pareciam ter som, um som que se foi elevando e elevando, como se todas as vozes da natureza se tivessem posto de acordo em celebrar a continuidade da vida a sua maneira. Em pouco tempo, o sensível ouvido do bardo percebeu perfeitamente a afinación de ritmos que se tinha produzido por sincronicidad natural e como a cada momento que passava era uma estrofa de uma imensa melodia, que tanto sua respiração como os batidos de seu coração acompasaban.
Olhou de soslayo para o “Homem Do Roble” e pareceu-lhe uma imagem humanizada da velha árvore da entrada que, igual que ele, sustentava relajadamente todos seus ramos e folhas para a Fonte de Vida sem aparente esforço, se carregando com o mais precioso e subtil alimento do dia, com seus vibraciones mais puras e poderosas, absorvendo a luz com gozo na cada poro. Só nesse momento Orfeo compreendeu que a retina, além de ser um complejísimo instrumento para receber imagens em forma de ondas luminosas, também o é para receber energias de vitalidad, que já lhe faziam sentir seus efeitos.
Lembrou-se daquela história do Mirlo e a Morte que tinha contado aquele outro ermitaño uma noite, em um albergue da planície, muito dantes de chegar ao país dos Gal: o mirlo tinha que comunicar à Humanidade que, a partir de então, poderia viver trezentos anos e lhe bastaria com se alimentar de ar e da luz do amanhecer.
Assim decorreu um bom momento, sem que o homem deixasse sua posição, tão só seu corpo se mecía de forma quase imperceptible sobre os pés imóveis, como os ramos e o tronco de uma árvore baixa uma suave brisa. Quando os raios de Apolo renacido começaram a brilhar demasiado forte, fechou os olhos e permaneceu com eles fechados algum tempo mais. O tracio também o fez e percebeu que a escuridão de seu campo visual interno estava invadida pela imagem persistente da memória do sol, que agora se tinha adueñado de seu interior.
Logo o ermitaño esteve praticando alguns estiramientos a ritmo muito lento. Orfeo perguntou-se que idade teria e não soube se contestar. Parecia muito velho, mas a flexibilidade de seu corpo ao dobrar a cintura e levar suas palmas até o solo, era claramente maior que a sua. Sentiu que caminhar não basta para permanecer em forma e que teria que se preocupar de ejercitar mais a movilidad de todos seus músculos.
Seu anfitrião terminou com algo que parecia um saúdo ritual aos deuses ou ao novo dia, mas pronunciado em uma língua bárbara e completamente desconhecida para ele, com uma vibración enlaçada de uma série de vogais em seu ventre, plexo, peito, garganta e paladar que pôde secundar bastante bem, afinándose com seu som.

Isso último foi uma clara ponte de comunicação inicial entre ambos e, quando ele veio a lhe dar o abraço e o beijo de acolhida, foi como se já outras vezes tivessem conversado juntos. Com uma cordialidad muito espontánea, fez-lhe sentar-se e sentir em sua casa... no entanto, emanaba dele uma autoridade interna tão grande, que parecia que suas atenções chegassem como de um centro situado muito, muito acima e muito distante, onde talvez residisse uma boa parte de sua ser.
Falando quase nada de si (o nome que deu lhe soou algo bem como Candam ou Candeán), fez que Orfeo se expressasse e escutou sua história a plena atenção e sem pestañear, como tinha atendido ao sol na manhã. Breves monosílabos ou curtas perguntas, acompanhadas pelo incisivo de seus olhos, bastaram-lhe para penetrar ainda mais nas motivações do tracio e, inclusive, para que este exteriorizase sentimentos e razões que nem suspeitava que tinha dentro. Só quando, depois de um bom momento de comunicação teve uma visão realmente clara e extensa do que tinha trazido até ele àquele estrangeiro, começou a falar também e a conversar.

-O Fim do Mundo e o Hades? -disse- Não te preocupes por sua localização, a cada homem os vai encontrar em seu caminho no momento em que esteja destinado aos encontrar. Ninguém deixa do fazer.
-...É que eu não quero esperar ao momento de minha morte, eu quero os encontrar já.
-Tu levas bastante tempo desejando e pedindo isso com força não é verdadeiro? -respondeu o idoso- Pois para já de desejar e de pedir, homem... O primeiro que há que fazer quando um lhe pede algo à Vida, é confiar em que nos atenderá e, enquanto, lho agradecer como se já nos tivesse atendido.
-Como se já me tivesse atendido? -disse Orfeo- Então teria que estar agradecendo que minha mulher está viva e a meu lado, ainda que não esteja.
-Isso é, ainda que ainda não esteja: imagina-te que já está e agradece por isso com entusiasmo à Vida. Essa é a melhor maneira do conseguir.
-Mas como o vou conseguir? E de que deusa estás falando quando falas da Vida?
-Não falo de nenhuma deusa, eu nunca tenho visto nenhuma deusa nem deus como te vejo a ti agora e aposto a que tu também não, no entanto os dois sabemos muito bem que estamos vivos e que este universo que nos rodeia também o está. A Vida, com maiúscula, é essa energia vital universal e indudable que está em ti e que te anima e que anima tudo. É a Vida Universal quem animou a tua mulher quando nasceu e quem pode voltar à animar.
-Eu daria a metade do tempo de vida que me fica a mudança de viver a outra metade junto a Eurídice -disse Orfeo com paixão recordando o que se dizia em Sicília de que Quirón tinha mudado sua imortalidade pela de Prometeo- Como posso lhe propor essa troca à Vida Universal?
-A Vida Universal não é um mercader grego, nem fenicio –riu “O Homem do Roble”-. Não se pode pechinchar nem negociar para obter seus favores. Só poderás os obter te fazendo um com ela. O qual não é tão complicado, tu sabes que és uma parte dela.
-Como eu, uma pequena vida individual, absolutamente insignificante, poderia chegar a me fazer um com a Vida Universal?
-Do mesmo modo que a mais pequena de tuas células nervosas pode percorrer teu cérebro dando uma ordem que faça que a totalidade de teu corpo se mova para a obedecer -respondeu o velho- Tua mente, por pequena que pareça, é uma parte consciente da Mente Cósmica. Um desejo de tua mente, se é um desejo convincente, por convencido, pode pôr em movimento a todos os poderes criadores e transformadores da Mente Universal, que é a força que criou tudo sobre este planeta Consegues o entender?
-Entendo-o, mas não posso confiar em que minha pequena vontade seja capaz de influir sobre a Vontade do Tudo.
-Então não ocorrerá, porque tua desconfiança sim que é uma convicção firme de tua mente que estará influenciando à Mente Cósmica para a convencer de que o que pedes é impossível de se conceder.
-Mas, por muito convencido que esteja de minha crença, já em otimista ou em pessimista –arguyó o bardo- Como uma simples crença minha vai influir sobre algo que é muitíssimo maior que eu?
-Porque, em realidade, maior ou menor, indivíduo ou totalidade, não são mais que apreciaciones, calificaciones e divisões artificiais e parciais, à medida de nosso mundo e de nosso tamanho, que é o mesmo que dizer à medida das percepciones humanas, e não podemos aplicar à grandeza cósmica do Único que existe, que não aceita medición alguma, que é e que está vivo, porque é o Ser mesmo, A Vida... ainda que ela se manifeste a si mesma através de infinitas unidades de manifestação, tão pequenas como tua vida pessoal ou a minha.
-Está bem –disse Orfeo, impaciente e algo abrumado por uma visão tão ampla-. Suponhamos que seja assim. Como eu teria que fazer para mover à Vida a que me devolvesse a Eurídice?
-Não podes fazer nada desde tua personalidade –respondeu o ermitaño-. Só podes tratar de não lhe prestar demasiada atenção a sua parloteo diferenciador incesante e te centrar em fluir, com naturalidad e sem esforço, a essa parte de tua Ser, na que não existem as diferenças. E desde teu Ser contemplar como a morte e a vida são a mesma coisa. Assim tua vontade de ver a tua esposa viva se fará uma com a vontade do Ser que és e que sempre tens sido, pois nunca serás mais ou menos do que já és, por muito que faças ou não faças.
-Como me centro em isso? -insistiu o tracio, confundido por aquela linguagem tão nebuloso.
-Já to disse ao princípio: só há que permanecer, sem mais, firme e acalmo no que um quer desde o centro de seu Ser, o visualizando como já conseguido, agradecendo por já o ter e atento e seguro de que a Vida, que somos nós mesmos, nos responderá ao que lhe pedimos com algum sinal ou com alguma pista, ou com algum encontro, ou sonho... E não duvidar disso nem andar o tempo todo desejando de uma maneira na que se faz patente a carência do que se deseja! A dúvida e o desejo carregado de carência separam-nos de nossa convicção de poder. E sem convicção de poder, nosso Ser, simplesmente, carece de força de realização.
Orfeo, então, contou-lhe a respeito do sonho que teve no coração do país dos Gal, da praia onde tinha visto a Eurídice e das bocas do Hades por onde tinha entrado.
-Bom -disse ele com naturalidad-, pois já está, já o tens... em qualquer momento vais encontrar essa praia com a que sonhaste, já estás no litoral. Só usar a memória e os olhos e não encher tua cabeça de vãs preocupações que, ao pior, te fazem passar por adiante de tua oportunidade sem a ver. Apetece-te um café da manhã?

Orfeo surpreendeu-se do fácil que o via o homem e ele mesmo se sentiu reconfortado, com sua esperança renovada... e com apetito. Ao cabo de um momento estavam cozinhando juntos sobre um fogón.


O velho tinha um acento muito estranho, inclusive para ser um galaico; parecia que a cada vez que se arrancava a dizer algo o começava em uma língua bárbara, rarísima, muito grave; mas dizia-o de uma maneira tão clara e expresiva que, apesar de ter algo nele muito distante, Orfeo o entendia como se estivesse falando em bom grego.
Após desayunar, Orfeo perguntou se ele via possível que um corpo morrido pudesse ressuscitar.
-Ressuscitar? -perguntou ele- E daí significa essa palavra tão estranha?
-Quero dizer, se vês possível que uma alma e um corpo possam voltar a interactuar juntos, como dantes, após que a morte os separou.
-E daí é o que te faz pensar que existam uma alma e um corpo e que se possam unir ou separar?
-Homem, pois eu lhe chamo corpo a este instrumento de carne e ossos que me permite comer e te falar e lhe chamo alma à parte de mim que o decide a comer ou a te falar e que razona, através do cérebro do corpo, sobre o que está falando contigo... Se esse cérebro se daña porque não posso respirar mais, então também não posso razonar mais nem te falar, isto é que não funciona mais meu corpo, porque está separado de suas conexões com minha alma, que é quem o anima.
-E que é o que te faz pensar que isso que chamas alma é o que mantém com vida ao corpo?
-Pois que em pouco tempo, esse corpo, se está separado da alma, começa a disgregarse e descomponerse... a não ser que o encerres em um bloco de gelo. Mas, de qualquer jeito pergunto-me -disse quejumbrosamente- se não se produzirão danos irreversibles em um cérebro congelado que deixa de funcionar.
-Por que supões que isso que chamas alma não se vai também a disgregar e descomponer a sua maneira, quando se separa do corpo?
-Minha alma não é algo material, senão minha pura consciência que percebe, que inclusive quando meu corpo dorme, pensa e sonha...
-Tua consciência pensa e sonha através de teu corpo –corrigiu o “Homem do Roble” sorrindo.
-... Minha alma não pode descomponerse, porque não está formada por milhões de partículas de água, terra, fogo e ar, igual que o corpo. -acrescentou o bardo.
-Não pode? Esquece-te um momento de que tens um corpo e dime a que sabe a melhor comida que tomavas em tua pátria.
A Orfeo fez-se-lhe a boca água quando recordou o plato rei de sua maravilhosa mãe, a musa Kalíope, uma artista genial em qualquer coisa que fizesse... a cada vez que o serviam em sua casa, os chiquillos gritavam de contente.
-Pois sabia a... –começou a dizer.
-Alto! -cortou o “Homem Do Roble”-. Não podes mo dizer.
-... Por que? -estranhou-se Orfeo.
-Porque se já não tens um corpo, já não tens umas papilas gustativas que mandem ao cérebro a lembrança desse plato que tinham armazenado em sua memória celular, nem tens um cérebro que conexione tuas células nervosas o suficiente como para recordar seu aspecto e o gosto que te dava to comer; isto é, que já não tens memória nem lembranças e muito menos capacidade cerebral para construir uma explicação sonora de como sabia, a qual seja capaz de chegar a meu ouvido.
Orfeo ficou confundido: -Queres dizer que minha consciência não pode funcionar sem meu cérebro?
-Parece que tua memória não poderia, amigo meu; nem também não tua capacidade de razonar, que se baseia em interrelacionar células nervosas que portam lembranças armazenados ordenadamente no cérebro... e sem memória nem capacidade de razonar, temo-me que tua consciência, ainda se seguisse viva, seria uma consciência vazia, ou cheia, em todo caso, de vadios conceitos subtis sem raiz na sensação e desordenados, por tanto, que não se podem relacionar entre si Não cries?
-A onde queres chegar?- perguntou Orfeo sentindo-se muito mau.
-Pois a que te perguntes se o que tu achas que és, Orfeo de Tracia, pode seguir sendo Orfeo de Tracia se se rompe tua atual unidade corpo-mente, tanto dá se por falta de corpo como por falta de mente... ou de alma.

-...Eu estou vivo, Eurídice está viva em mim... Porque somos uma mesma alma, tão só separada em duas partes e em dois mundos diferentes para melhor poder amar-se -disse Orfeo, mais bem para si mesmo. Para reforçar-se, já que não se lhe ocorria outra coisa que dizer.
-Isso esteve muito bonito, poeta -disse o “Homem Do Roble” sorrindo mais amplamente-. Não sê se se pode refutar com a lógica, mas não se deve. A vida precisa mais do amor e da poesia que da lógica.
-Estás-te rindo de mim?- Orfeo estava estranhado de que o velho sofista não aproveitasse seu desconcerto para demoler definitivamente suas ilusões.
-Em absoluto –sorriu de novo o ermitaño-. Rio-me da lógica, que mal é um instrumento da mente para andar por casa, para operar sobre os níveis mais materiais do ser... Se queremos falar de coisas importantes e trascedentes, a lógica não nos serve, há que recorrer à poesia, que é a linguagem dos deuses. Felicidades por ter jogado mão dela dessa maneira.
Levantou-se: –Agora eu tenho que ir recolher lenha para minha fogueira e água... Comento-te que sou um dos encarregados de oficiar as cerimônias que se realizam no Ara Solar, que é o Espaço Sagrado mais importante que há nesta montanha e dizem que o mais antigo; se ficas a comer comigo, te posso levar ao ver ao entardecer...
-Ficarei por conversar algo mais contigo, venerável, mas me permite que te ajude em teus quehaceres -respondeu Orfeo cortesmente, já que tinha passado toda a noite anterior sem dormir e precisava uma boa siesta dantes de se pôr a buscar a praia de seus sonhos.


O “Homem Do Roble” vivia de uma maneira tão austera e tão singela que suas quehaceres eram mínimos e após despacharlos entre os dois, Orfeo pôde dormir à sombra da árvore todo o que quis. Quando acordou, um apetitoso e abundante almoço lhe estava aguardando. Os galaicos tinham produtos do mar e da terra de primeira qualidade e não precisavam demasiadas complicações culinarias para que soubessem muito bem. Agradeceu à Vida o poder dispor ainda de umas sensíveis papilas gustativas.

-Parece que, apesar de toda lógica, segues buscando o milagre -comentou o ermitaño depois.
-Sim, que outra coisa posso fazer?- respondeu Orfeo-. Em meu país não faltam os lógicos e já tenho escutado todo tipo de argumentaciones inteligentes. Mas nenhuma delas é capaz de fazer desistir a meu coração de sua busca. E eu sento, em verdade, que se tão forte é minha demanda interna, não poderia viver tranqüilo se renunciasse à escutar... me voltaria louco. Na busca, pelo menos, fica-me a esperança.
-A esperança é a lembrança do poder de seu divinidad que guardam os homens no subconsciente- respondeu o idoso.
-De seu divinidad?- Orfeo surpreendeu-se de que o ermitaño passasse de uma postura argumental baseada na razão à contrária, com a mesma naturalidad com que, em seu país, o tempo passava de chuva a sol e de sol a nevoeiro.
-Se levássemos uma divinidad dentro –disse o “Homem Do Roble” naquela nova linha de pensamento- seria possível todo quanto fôssemos capazes de imaginar com força e sentimento, porque o pensamento de uma divinidad cria aquilo no que pensa, com só o pensar.
-Na Grécia muitos acham que levamo-la dentro -respondeu o bardo- há muitos mitos sobre isso... mas que está encerrada no inferno de nossa materialidad... parece que a imortalidade residiria em conseguir, não só a resgatar de ali, senão conseguir também que imperase sobre nossa matéria corporal até sutilizarla, até livrar a nossa esencia física de suas partes efêmeras e corruptibles.
-Pois isso é o que certas pessoas de conhecimento chamam ”revelar o corpo de luz”, ou o “corpo glorioso”, baixo o corpo débil e efêmero que temos recebido de nossas mães, a base de limpar nossa mentalidade de complexos limitadores, isto é, realizar a Transfiguración. Mas para isso, um tem que parirse a si mesmo em um segundo nascimento.
-E como se consegue isso? -perguntou Orfeo.
-A base de imaginá-lo como se levássemos dentro um deus que o imaginasse, a base de não duvidar Mas não duvidar nem por um momento! que levamos esse deus dentro, o Ser, e que o que ele deseja com força, se consegue.
-Imaginar e crer em que o que imaginamos se realizará... isso me soa ao que chamam ter uma fé -disse o bardo.
-Chama-lhe, simplesmente, ter fé. Dizer “ter uma fé” soa, mais bem como ter uma crença. E não vai por aí a coisa, não. Sobram crenças inefectivas neste mundo. No entanto “ter fé” significa crer no próprio poder e sabedoria, em nosso deus interior pessoal, que é o núcleo de nosso eu. E crer também na Vida, que é o Deus Cósmico, o núcleo invisível e permanente de todo o universo que podes ver e ao que lumes a realidade, apesar de que sabes que todo o que vês é impermanente.
-Muito bem... entendo-o. Mas não acho que baste com ter fé no próprio poder, preciso ter uma prova de que esses, meus poderes nos que confio, existem e são reais.
-Existem na esencia de todo ser humano e são reais, omnipotentes e não faz falta cultivarlos nem os aumentar... claro que há que cultivar e desenvolver tua fé neles para que se manifestem e possas estar seguro deles, porque tens visto que tua fé os fez se manifestar.
-Mas... Como se cultiva e desenvolve a fé que precipita os poderes dos que falas?
-Só há uma maneira -respondeu o “Homem Do Roble”-: vivendo conforme à dignidade que queremos dar a nosso deus interior e projetando sua força e sua luz benfeitora e criadora tudo a nosso arredor, em desinteresadas obras de amor, com toda potência e intensidade. O que semeias, volta a ti quintuplicado. Quando vês que volta em tal proporção, podes estar seguro de que tinhas semeado bem e seguir semeando. Mas há muita gente que só se lembra de sua divinidad interior quando a precisa, para lhe pedir. E há que se lembrar dela também quando estás sobrado de bênçãos, para dar. Quanto mais dás no momento de abundância, mais recebes quando a lei da balança faz que chegue a vez da carência.
-E como dar se um tão só é um bardo, como eu...? –disse Orfeo.
-Pois projetando a força de teu talento e de tua habilidade tudo a tua ao redor, em desinteresadas obras de amor, de graça, de beleza, de sabedoria, de utilidade, de simpatia, de força, de profundidade... com toda potência e intensidade... e é o mesmo se um é um curandero, ou um chefe de nação, ou um agricultor, ou uma mãe de família, ou um guerreiro, ou uma prostituta...
-Também um homem que vive para a guerra? -estranhou-se Orfeo- Que tem que ver a guerra com o amor?
-Não há oficio no mundo que não possa converter a quem o pratica em um santo, um gênio ou um herói, se o vive com a intensidade e com a autenticidad com que poderia o viver o deus que leva dentro, amigo Orfeo. Este mundo é o teatro onde joga seus mil papéis o Único Ser Eterno e o único que lhe pede aos atores que vivifica é que interpretem seus papéis o mais intensa e brilhantemente possível, ainda que o papel que um tenha escolhido, ou que lhe tenha tocado, seja o do villano...
-Estás dando um valor ao papel de villano?
-Sim, se consegue-se vivificar um bom villano e não um villano mediocre. São necessários os heróis villanos, para que os heróis nobres brilhem. Quem dirige a função sabe que só é uma função, mas gosta que seja de uma boa função, na que a cada membro da partilha se coloque inteiro a si mesmo em sua personagem...
-Agora entendo melhor a uns paisanos teus que conheci pelo Caminho, os Brigmil... Será que existem essas Ilhas dos Bienaventurados às que esperam ir os heróis que não temem a morte no combate?
-Já tenho ouvido falar dos Brigmil... –disse o “Homem Do Roble”-... seguro que essas Ilhas com as que sonham se converterão em uma realidade para eles e que acabarão chegando a sua costa e as gozando, se o deus interno de todos e a cada um desses heróis as mantém com força em sua imaginación e se eles lhe dão poder para isso, vivendo a plena intensidade e sem a menor duvida o papel que escolheram viver.
-E eu conseguirei chegar ao Hades e aos Campos Elíseos? ...Ou será melhor buscar uma praia em onde me embarcar em busca das Ilhas dos Bienaventurados?
--Deixa as Ilhas da Eterna Juventude para o povo dos Gal -riu o velho- e tu segue buscando as bocas do Hades e teus Elíseos. O Para além encontra-se em outra dimensão, dentro do Subconsciente Coletivo da Humanidade, mas a cada povo tem que o buscar tal como o imaginou e como lhe deu força e realidade sua própria cultura e crença. Esse é o melhor caminho para chegar ali com bem, homem...
...Caso contrário –seguiu o ermitaño-, terias que te pôr a estudar a fundo toda a cultura e a maneira de ser dos Gal e até viver em uns anos com eles, para poder apreciar o tipo de paraíso que desenharam coletivamente em seu imaginario, segundo seus gustos... Talvez te parecia demasiado bullanguera nossa versão dos Elíseos.-
-...Mas isso significaria -disse Orfeo confundido- que não há uma realidade verdadeira e única, senão tantas como as que a cada povo do mundo é capaz de imaginar.
-O que a cada povo é capaz de imaginar é sua interpretação do que dantes imaginou o Ser que nos sustenta a todos em seu imaginación, nos dando existência com isso. Nossas mentes individuais são gotitas do rio da Mente Coletiva de nossa cultura, que é uma gotita do oceano da Mente Cósmica. Todo quanto podemos imaginar é algo que já foi imaginado dantes pelos deuses, e que tem tantas possibilidades de se converter no que nós chamamos realidade, se nos concentramos em isso com força e sem estabelecer diferenças nem duvidar, como as que teve o pensamento divino que originou nossa Espécie Humana, que não se parou a diferenciar nem a duvidar, enquanto pensava, se estava elaborando uma ideia razoável ou uma fantasía.
-Será assim de singelo? -arguyó Orfeo ironicamente- Se fosse-o, eu não teria senão que imaginar com força e sem nenhuma dúvida que, a partir de agora, todo aquele que morre e vai ao Hades pode, se o deseja, pedir ao Rei dos Infernos que lhe deixe sair de vez em quando a passar em uns meses felizes com as gentes vivas e mortais que ama, igual que deixa a sua esposa Perséfone sair a cada ano a levar a primavera aos campos de sua mãe Démeter.
-Pois talvez é que ninguém se atreveu a lhe o pedir ainda com tanta segurança de que o vai conseguir como lho pediram em seu dia sua mulher e sua senhora suegra -riu o “Homem Do Roble”, muito a gosto.

Orfeo não riu e até ficou um pouco espantado de que aquele chamán bárbaro estivesse sendo irreverente, adiante dele, com um deus poderoso como nenhum e terrível, que tinha em suas mãos o destino de sua esposa e dele mesmo e de todos os seres... ou pelo menos, de todos os egeos.
-Acho que é um ato de soberbia que um simples ser humano como qualquer outro –disse em voz alta e muito seriamente, para desagraviar a Hades-, se atreva a dirigir a um deus para que faça com ele uma exceção a uma lei geral e natural, só porque ama apaixonadamente a sua esposa.
-Se eu fosse esse deus e estivesse dentro de ti, como devem estar os deuses -disse o velho-, me daria muita pena que me temessem tanto ou me considerassem tão inflexível que até pensassem que me ia enojar e a me vingar porque um coração apaixonado me fizesse uma petição tão natural... E se eu fosse Orfeo, me daria conta de que não vou conseguir o que quero enquanto tenha a menor dúvida sobre se o que quero conseguir é correto ou não. A contradição interna anula o poder do deus interno.
-Chega –respondeu Orfeo com cortês firmeza, mas sentindo-se muito mau, tal como se lhe tivessem arrojado um caldero de água fria por em cima-. Já está bem de falar assim de mim e de meus deuses. Tu és um bár...um estrangeiro, com outra religião, e com outra mentalidade e não podes os entender como eu os entendo.
-Tens toda a razão, perdoa se feri tua suscetibilidade, ilustre hóspede... –respondeu o “Homem Do Roble” sinceramente, abrindo as mãos e inclinando a cabeça-... não o tomes a mau, os galaicos somos demasiado habladores... -e depois, sorrindo com confiança- Sabes? Daqui a pouco cairá a tarde e faremos no Altar Solar um sacrifício a Hades para desagraviarle e para pedir-lhe que te mostre as portas de seu reino Te parece bem?
-Agradeço-to muito -respondeu Orfeo, ainda com uma verdadeira frialdade-. E eu posso acompanhar tua cerimônia com minha lira, se o desejas, para te dar também algo de mim que compense minimamente tuas atenções.


Vistas desde o caminho que vinha da morada do “Homem Do Roble”, algo mais ao norte do Templo do Amor, tinha três acumulaciones de rochas naturais na crista do cabo e, no meio da central, destacábase claramente uma que servia de bandeja ao sol, tanto quando se levantava por Oriente, depois da Morada de Deuses do outro lado da baía, como quando se punha por Occidente no abismo.
Com sua perfeita disposição cardinal a dois mares, era a mais completa Ara Solar que Orfeo tivesse visto dantes e tão bem integrada com o médio que parecesse que os mesmos deuses a tivessem posto ali ao princípio do mundo, para cumprir suas funções, sem mal impressões da intervenção humana.
O recinto sagrado dispunha-se sobre uma ampla praça circular de pedra basta e maciça que, pela velhice de sua cor, talvez teria sido, faz muitos séculos, a coberta de um grande dolmen, já soterrado. Circunscrito em relevo na praça circular achava-se um hexágono, cujos seis vértices estavam enfeitados por seis cruzes de braços iguais, inscritas, a sua vez, em círculos de granito. Seguramente as teriam acrescentado ali os últimos invasores, pois se viam bem mais modernas que o Ara.

O Ara Solar propriamente dita, colocada no centro da praça, consistia em uma mesa em forma de copa pétrea, cujos bordes chegavam até a altura do peito de um homem em pié, colocada sobre um pedestal conformado por uma base cúbica. A cada um dos lados de sua base estava perfeitamente orientado para um dos pontos cardinales. Tudo estava rusticamente talhado em duas peças superpuestas.
A tabela redonda do altar era suficientemente larga como pára que pudessem oferecer seus sacrifícios pessoais até seis oficiantes ao mesmo tempo.
O majestuoso conjunto, simples e austero como a paisagem litoral circundante, era de pedra granítica, à que séculos de exposição aos ventos do oceano tinham desgastado e pulido seus bordes, além de patinarla e policromarla com esses musgos e líquenes brancos, verdes, amarelos e dourados que fazem parecer antiga e nobre à mais modesta das casas dos Gal.
-Queres ver uma coisa curiosa?- disse o “Homem Do Roble”-. Empurrou o Ara Solar em direção a oriente e aquele maciço altar de pedra pareceu mover por um instante. Orfeo mesmo empurrou o ara então e percebeu como se deslocava ligeiramente apesar de que era uma mole. Os antigos tinham-no disposto sobre o que costuma se chamar uma “rocha caballera” que não se sustenta sobre toda sua base, senão mal sobre um ponto ou dois dela. Era um tremendo acumulador de energia colocado em tensão, como os dólmenes dos ancestros.
Orfeo sentiu de repente a imensa sacralidad daquele lugar e se descalzó seus sandalias de caminhante, igual que tinha feito o idoso, para não contaminar com o pó dos muitos lugares profanos percursos. Depois sacou de seu mochila a túnica curta branca e limpa que reservava para se apresentar dignamente onde fosse necessário.
Usaram a água que vinha canalizada de uma fonte próxima para apurar suas mãos, sua cabeça, peito e sobacos, seus pés... e as últimas gotas as asperjó o oficiante sobre o altar de pedra, em suas quatro direções, agradecendo sua guia e proteção a todos os deuses e potências do Universo.
Quando esteve vestido de limpo junto ao altar pôde ver que seu centro estava ocupado por uma cazoleta tiznada superficialmente, escavada na pedra para queimar oferendas, na que dispuseram a lenha que portavam. Doze canalillos inclinavam-se pára que o sangue dos sacrifícios chegasse até ela desde os bordes. No centro da cazoleta tinha outro oco por onde o sangue e a chuva deveriam chegar até a mãe terra, através de outro canal cilíndrico que atravessava o centro do cubo sustentador do grande grial de pedra.
Segundo começou a declinar a tarde, uma dúzia de vizinhos e uns poucos peregrinos acercaram-se ao espaço sagrado, portando, alguns deles, animais vivos e outras oferendas para os sacrifícios. O “Homem Do Roble” foi-os recebendo um a um, degolando com maestría e sem dor aos animais, troceándolos, fazendo augúrios segundo a maneira como morriam ou a disposição das veias e queimando as partes correspondentes ao Deus do Sol, à Deusa Triplo Mar-Lua-Terra ou a qualquer outros deuses ou aspectos da divinidad a quem fazia sua petição ou homenagem o ofrendante.

Como Orfeo não tinha grande coisa que oferecer em sacrifício, deu para queimar sobre o altar alguns frutos secos que levava em seu mochila e depois, como quem se desprende de seu passado, entregou também, junto com ervas aromáticas e flores amarelas do cabo, sua velha túnica de viagem, marcada por todas as impressões das experiências vividas em busca de seu anseio, para o cumprimento do qual pediu uma vez mais, ao fazer o rito das libaciones, a misericordia dos Deuses Infernais.
O idoso completou seu sacrifício queimando uma boa parte do que lhe tinha correspondido a ele das oferendas, para pedir para Orfeo a colaboração das vibraciones do divino que em si mesmo tivessem sido desenvolvidas por seus mais sinceras conexões com O Elevado.
A um sinal de seu anfitrião, o bardo tomou sua lira e esteve um bom momento tocando os hinos de Hermes, Afrodita e Febo Apolo a pleno sentimento e devoción, enquanto a Carroça Solar iniciava seu declive.
O momento mais mágico foi quando o sol rojizo desceu o suficiente para que, desde onde ele estava, parecesse como se se fosse meter na copa de pedra do Ara Solar, rodeada de cruzes e tendo como fundo o azul horizonte marinho, ardente de nuvens cinzas, violetas e laranjas.
Orfeo imaginou que se em um dia chegassem a civilizarse e a unificar em uma nação para valer as revoltosas tribos de Oestrymnis e se ele chegasse a ser amigo do rei dos Gal, sem dúvida lhe tivesse sugerido aquelas imagens para que as compusesse no escudo do País do Fim do Mundo, tal como agora mesmo as estava vendo. E colocou todos esses sentimentos em um arremate musical da cerimônia, enquanto o sol desaparecia no mar e o idoso abençoava aos assistentes, tocando com solemnidad o hino que tinha composto para os Brigmil, ainda que sem se atrever a cantar a letra.

Depois despediu-se rapidamente do “Homem Do Roble”, pois estava demasiado ocupado atendendo a seus feligreses. Ademais, o bardo já não sentia muita vontade de seguir conversando com aquele sofista abrumador. Caminhou até a terceira acumulación de rochas situada na cume norte do cabo, disposto a descer por ali para o povo, mas, quando chegou acima, o que vió lhe fez dar um viro ao coração.

Ante a rocha à que subisse, o cabo ia descendo, em uma longa saia de tojales orlados de caminhos ondulantes, até uma ampla praia semicircular onde as ondas se lançavam com verdadeira fúria sobre a brilhante areia, dourada pelo entardecer.
No horizonte norte, ao outro extremo dela, um cabo alongado de alto lombo pulido avançava com determinação justo para ocidente e sua espolón ia arrematado por uma rocha triangular, em forma de vela mediterránea, que enfilaba as ondas e as trevas do abismo, tal como contavam os mitos que a Nave de Hermes enfilaba as águas interdimensionales que separavam o Mundo dos Vivos do dos Mortos.
Abraçava ao arranque do cabo por diante outro monte sobre cuja saia e cimeira se destacava, à luz do entardecer, um grande laberinto em forma de oito vertical, composto de caminhos espirales e bordeado a sua esquerda por abruptos alcantilados que caíam sobre o mar sobre uma grande Unha de Pedra que parecia sair do abismo para rascarlos. Ante a unha, rochas mais baixas, como arrancadas por ela, que chegavam até a praia de ondas furiosas.
Era a mesma praia e as mesmas rochas nas que Orfeo, poucos dias dantes, tinha visto em seu sonho a Eurídice sentada. Caiu postrado de agradecimiento.

Depois voou, mais que correu, caminho abaixo, para chegar ali dantes de que se estendesse a noite.


Quando por fim se encontrou percorrendo apressado aquela praia diretamente enfrentada ao Mar de Afora, mal ficavam no horizonte as impressões da agonia do sol tiñendo de sangue o céu tempestuoso. As ondas batiam sonoras, como longas e pavorosas baterías de martillazos de titanes encadeados, ou como manadas selvagens de espumeantes cavalos que quisessem invadir e devastar a terra.
Aquele cabo escuro e misterioso que dava fundo à praia, cuja ponta, que chegava em sua contraste até o borde mesmo das incandescentes trevas, parecia estar arrematado pela Nave de Hermes era, sem dúvida, o verdadeiro Cabo Ocidental do Fim do Mundo e não aquele outro que olhava ao sudoeste, pela parte do faro no que a maioria da gente arrematava vulgarmente sua peregrinación, apesar da sacralidad indudable de suas Altas Aras, a onde poucos subiam.
O caminho em forma de laberinto destacava-se claramente de abaixo acima do monte, à direita do alcantilado e da Unha do Titán.

Ao final da praia reconheceu perfeitamente as rochas que tinha visto em seu sonho, mas Eurídice não se encontrava ali essa vez.




XVI. As BOCAS DO HADES


Orfeo encontrou também o estreito caminho que subia ao alcantilado por trás da Unha de Pedra, junto aos caminhos daquele laberinto, a cada vez mais claro e definido, no que não se tinha fixado em seu sonho. Subiu às cristas rocosas que caíam sobre os portais do Inferno dantes sonhados, entre os gritos assustados e os revuelos de centos de gaviotas de patas amarelas, negros cormoranes, ou corvos marinhos, que não se queriam apartar de seus ninhos de algas, e erguidos vos arem, que agitavam suas gargantas com um movimento palpital, de onde saíam graves e broncos graznidos.
Encontrou uma maneira de ir, pouco a pouco, descolgándose pelo borde sem despeñarse até o nível do mar, onde se encontrava a gruta por onde tinha penetrado sua amada. Após o que pareceram horas de esforço, quando quase não ficava nada de luz, acabou pelo conseguir.
Mas quando chegou por fim ante o grande oco, se encontrou com que a suposta entrada não existia. Aquilo não parecia ser senão uma grande urna de pedra maciça, escavada no alcantilado pelo mar a diferentes alturas em suas subidas e baixadas incesantes durante milênios.
Gritou e gritou o nome de Eurídice em vã concorrência com o rugir das ondas, invocou a piedade dos deuses do Inferno, Hades e Perséfone, até que lhe cercaram as sombras da noite, mas as rochas continuaram imóveis, inconmovibles e impenetráveis.
Finalmente sacou sua lira, abrigou-se com sua camada, sentou-se sobre uma peña e começou a tocar e cantar.

Sua música nascia diretamente do impulso de amor desmesurado que o mantinha com vida e na busca, seu canto reuniu em si mesmo o de todos os animais clamando doce e melancolicamente por seu casal, já como reclamo, urgência ou súplica. Sua melodia se acompasó com o rítmico e contínuo fragor das ondas que abraçavam a praia, se separavam e voltavam a se precipitar nela... desejou com todas suas forças que aquele canto ablandase à mole escura e derritiera às rochas que lhe vedaban o passo, mas o alcantilado se manteve inconmovible, enquanto a sombra se apoderava do mundo por completo.
Nem uma estrela via-se na fria umidade da negrura, mas não por isso deixou Orfeo de cantar. Foi sua voz luz invisível e faro por muitas horas naquela Costa da Morte e, depois de um descanso quando já não podia mais, a lira seguiu soando e depois sua voz de novo, um lamento interminável convertido em um monumento de variadas e ricas sonoridades armónicas, por graça de sua esperança e maestría.
Mas Hades não parecia ser um deus minimamente dotado de compaixão, como supunha o rústico ermitaño que devia ser um deus, senão um demônio cruel que devorava vidas a milhares todos os dias e ao que o lamento de um viúvo apaixonado lhe resultava tão indiferente como os aullidos agónicos das pobres gentes em tantas guerras acuchilladas, asaetadas, queimadas ou violadas até a morte, lastimeras vítimas que ensangrentaban os países e que deixavam por todos os lados dúzias e dúzias de viúvas desesperadas e de huérfanos desvalidos e llorosos aos que também não escutava para nada.
Grande parte da noite decorreu assim, até que o bardo já não pôde mais e ficou dormido sobre as rochas.

Quando acordou ao amanhecer, aterido de frio, tinha, como clara inspiração, uma imagem e uma frase de seu sonho anterior em sua memória: Aito e os Brigmil passando de novo ante ele e lhe repetindo: “Força! Percorre até o final teu laberinto!”.
Como o mar estava em acalma e se sentia sem forças para ascender o alcantilado de novo, assegurou com seus correas a funda da lira às costas e se meteu nas frias águas, contorneando a nado com toda precaução o borde dos farallones e conseguindo chegar ao pé de umas rochas desde onde pôde voltar caminhando à praia. Andou até seu centro e depois voltou-se, para apreciar o laberinto de caminhos espirales em forma de oito que ascendia entre tojales por todo o monte, extremado pelos alcantilados das bocas do Averno e pelo bosque.
Entendeu que aquele laberinto era uma prova que teria que superar dantes de ser admitido no reino de Hades, mas estava demasiado esgotado para começar já. Ao outro lado da praia viam-se as primeiras casas do povoado dos nerios e, apesar de que mal estava amanhecendo, de uma delas saía a fumaça da cozinha e o aroma de comida quente.

Dirigiu-se, empapado, para ali e chamou à porta para suplicar por algo de alimento que lhe permitisse repor suas forças. O modesto pescador que ali vivia, apesar de não entender nenhuma língua civilizada, lhe recebeu com amabilidad, lhe deu algo para se secar e para se cobrir, pôs suas roupas ante o fogo e compartilhou com ele o grato café da manhã que estava preparando.
A falta de palavras, trocaram gestos e expressões. Ao terminar, o pescador deu a entender que saía para sua barca, para um dia de trabalho. Orfeo assinalou para o caminho laberíntico do monte, depois para si mesmo e com dois dedos sobre seu palma fez o ademán de que desejava o percorrer.
O homem entendeu –“Donnon, Donnon”- disse. E depois repetiu-o várias vezes, enquanto assinalava um caminho que arrancava da praia e se dirigia, contorneando o monte, ao bosque que tinha à direita do laberinto, pelo lado oposto ao do alcantilado.
Despediram-se. Orfeo ficou um momento quase nu na parte alta da praia, contemplando como se levantava o sol ao outro lado da baía interior, depois da poderosa montanha de granito rosa que o coroava, e aguardou a que suas roupas acabassem de se secar minimamente com seus raios. Depois, sentindo-se melhor e mais quente, vestiu-se e começou a ascender o caminho assinalado, que discurría entre uma espessa floresta de robles.


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