domingo, 11 de setembro de 2011

21- MEDITERRÁNEO ORIENTAL:, BELEAZAR

PARTE SEGUNDA:
O LONGO PERIPLO
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MEDITERRÁNEO ORIENTAL : BELEAZAR    

 -Eu só tenho uma pátria, o mar. E meus compatriotas são os outros navegantes, já sejam cananeos, cretenses, pelasgos, egípcios ou tartésicos, ou de onde lhes parieran suas mães, inclusive os perversos gregos, ricos em enganos. Os navegantes são os que consideiro minha família e meus irmãos, ainda que às vezes tenhamos que abordar e lançar a pique a um deles, sem má vontade pessoal por nossa parte, porque o negócio é o negócio e a concorrência é dura. 


        Assim falava Beleazar, um fenicio de ralos cabelos médio cinzas e encaracolados, nariz ganchuda, olhos maliciosos, complexião flexível com algo de feliz barriga e uma autoridade que fazia adivinhar desde longe que ele e não outro, era o capitão, ainda que se encontrasse em terra, longe de sua nave “Astarté”, que era, ao mesmo tempo, sua deusa, seu amor, sua casa e sua empresa.
“Astarté”, estava muito bem acabada em madeiras de alta qualidade e resistência: cedro, pino, encina e ciprés, pintadas de negro. E era bastante grande: vinte e cinco remeros pela cada lado. E alta, para poder armazenar abundantes mercadorias. Com a popa em forma de fila de pescado, escamosa, broncínea e com a proa vermelha e espiral. Aproveitava a força do vento por médio de velas rectangulares em cujo centro tinha uma estrela dourada de oito pontas, distintivo de aliança concedido ao capitão tirio por um “Rei da Prata” ibérico. Todos os remeros eram escravos encadeados, sujeitos a uma disciplina dura e inflexível pelo cómitre, aos que tinha que ir renovando sem piedade à medida que se desgastaban.
Navegavam em periplo, o que quer dizer sempre à vista do litoral e de dia. De noite ancoraban com âncoras de pedra em alguma rada ou, se tinham forçadamente que navegar, usavam tabelas de distância e se guiavam pelas principais luminarias do céu, baseando nos conhecimentos que os antepassados acadianos dos fenicios tinham aprendido dos turanios caldeos, observando muito especialmente as duas estrelas da Ursa Maior cuja enfilação dá a Polar e tratando de localizar pontos relevantes da costa. Se o mar punha-se feio, buscavam rapidamente um bom refúgio. Se havia nevoeiro, pombas amaestradas marcavam o rumo.

Beleazar era um autêntico lobo de mar que levava em sua nave mercadorias orientais para a parte central do continente europeu e tinha recebido a Orfeu nela depois que ele lhe tivesse falado de sua experiência com os argonautas.
-Eu dirijo-me a levar um cargamento para os Dorios da costa Dálmata de Iliria, fazendo antes tentativas de negócios nas Ilhas Jónicas, e depois ainda subirei a visitar à maga Circe na ilha de Eea, para acabar recargando minha nave em Helos, no extremo noroeste do Adriático, e regressar a Tiro via Creta e Chipre. Se queres ir a Iberia por mar, posso-te levar comigo até a ilha dos Feacios, Drepane, na costa ocidental da Grécia no Mar Jonio e ali terás que buscar outra nave que vá para a Itália... mas se não é verdade o que me dizes que sabes fazer e não me és útil, te cobrarei o bilhete te vendendo como escravo em Pylos -lhe disse tranqüilamente.

O capitão tinha podido comprovar durante dois dias, depois da saída de Creta, a utilidade do bardo à hora de armonizar o ritmo com seu canto e de amenizar o duro trabalho dos remeros com sua música. Depois, ao chegar a Pylos, a arenosa, Sulpreendeu-se quando Orfeu lhe propôs que fora com ele a apresentar seus respeitos aos soberanos locais, Neleo e Cloris, pais de Néstor, quem, apesar de sua juventude, tinha competido na seleção para ser um dos argonautas, ainda que se retirou ao se inteirar de que estavam esperando a Hércules, quem sem dúvida dirigiria a expedição. Néstor conheceu de perto ao coloso em um de seus piores momentos e não lhe apetecia o mais mínimo nem estar baixo suas ordens nem lhe ter como parceiro.
Os reis receberam-nos com afabilidad e interesse, já que Neleo era tio do rei de Ptía, Acasto, filho de Pélias, e ademais amigo de Augías de Élide, dois dos argonautas de maior linhagem, de quem tinham muitas notícias novas.
- -Trazer o Vélado d´Ouro foi uma verdadeira façanha da que todos os gregos estamos orgulhosos -disse a rainha Cloris-, mas o que fez depois Medea para lhe devolver o trono de Yolkos a Jasão é uma canallada innoble que ensucia completamente essa glória: enganou com seus hechicerías às filhas de Pélias, fazendo-lhes achar que sabia como lhe devolver a juventude, e as convenceu pára que despedaçassem a seu próprio pai.
-Jasão é um idiota, ou deve-a temer muito, para continuar unido a semelhante bruxa que, ademais, traiu por ele a sua família e a seu país. No dia que tenham um desacordo o defraudará sem piedade da mesma maneira -disse o rei-. Teseo, que era mais pronto, não se quis trazer a Atenas à loira Ariadna, que também se deshonró ante seu pai e seu Creta natal ao apasionarse por um inimigo de seu país e lhe ajudar. Abandonou-a sabiamente na ilha de Naxos. Acolher em tua casa a um traidor aos seus é como meter nela uma doença contagiosa, só porque te fez o favor de livrar de teus rivais.

Neleo teve a gentileza, em honra de Orfeu, de dar-lhe a Beleazar toda classe de facilidades para seus gerenciamentos em seu país, apesar de ser fenicio, a mudança de que resolvesse alguns negócios seus com os Dorios de Dalmacia; mas não puderam ver a Néstor, que se encontrava viajando. O trácio sentiu-o muito, porque Néstor era um jovem sábio, nobre como ninguém e sereno, sempre conciliador nas disputas; ademais, todo um herói: antes de tentar embarcar-se com Jasão tinha lutado contra os Monolidas, contra o gigante Ereutalião, participou no confronto entre os lapitas e os centauros e na famosa caçada de Calidón, junto com outros argonautas: Meleagro, o grande Anceo. E Atalanta, que continuava demonstrando, como sempre, que uma mulher podia ser tão guerreira como o mais guerreiro dos homens.

Beleazar sentiu-se muito honrado pela visita aos reis de Pylos e pelas vantagens obtidas dela, de modo que agora tinha em grande consideração a Orfeu e o convidó a cenar e a beber em sua companhia e a sua conta, durante as duas noites que passaram ancorados no porto, relajándose e descansando após os dois grandes dias de trabalho que acabavam de decorrer, fazendo tratos comerciais e descargando e carregando novas mercadorias.

-Sim senhor -dizia pára Orfeu, um pouco achispado, depois de um bom jantar em uma de melhore-las fondas de Pylos-, minha pátria é o mar e meus compatriotas quem navegam-na. Ainda que eu tenha nascido em Tiro, a bem murada, me senti mais identificado com um pirata focense que tive que ahorcar após três dias de dura perseguição e luta por sobreviver, que com todos esses gordos tirios que me recebem igual que se eu fosse um simples caravaneiro que vem de Lidia ou de Hatti, quase daí ao lado compreendes?... e que, segundo acabo de chegar de uma viagem a mais de um ano às Ilhas Casitérides, se põe a me pechinchar o estanho como se o estanho fosse algo semelhante a dátiles e lana e não o sangue de muitos de meus homens, morridos em uma aventura heróica de descobertas nos litorais do Fim do Mundo, heroísmo que essa mesquinha gente não sabe valorizar, porque nunca saíram de suas lojas no mercado e nem sequer têm ideia do longe que se acaba o mar e começa o Oceano.

Presumido e bom hablador, seus temas de conversa eram dois: os negócios e as aventuras de descoberta e colonização, que para ele eram a mesma coisa. Quando se deu conta de que a Orfeu pouco se importava os primeiros, se centrou nas segundas para captar a atenção daquele trácio de bom berço que tão bem sabia escutar e que, ademais, era capaz de compor uma canção com as partes mais interessantes do relato ouvido, à que depois ia dando forma musical com a lira, sem descuidar por isso seu necessário e eficaz trabalho com os remeros.
A Beleazar gostava de exagerar (ele dizia que era “criativo” quando se expressava) mas, ao observar uma noite como se riam de soslayo seus tripulantes, após que Orfeu lhes cantasse um poema sobre uma façanha marinha que, tal como o capitão lha tinha relatado, não era demasiado real, senão mais bem todo o contrário, decidiu se cuidar de voltar a lhe contar nada em cuja versão não pudessem estar de acordo seus homens.

-O mundo tem experimentado um retrocesso depois da queda do Império Minoico -disse o capitão fenicio, fazendo admirar a Orfeu a qualidade de uma cerâmica do melhor período cretense, enfeitada com pulpos e outros motivos marinhos, que decoraba elegantemente o melhor lugar da sala- e como império se parece a “emporio”, que significa estabelecimento comercial”, a nós e aos gregos gostamos de achar que somos seus herdeiros e os continuadores de sua cultura, mas a verdade é que tão só temos assumido os aspectos mais práticos e superficiais dela, e que demoraremos séculos em chegar a compreender e a assumir a sutileza e a grande evolução daquela civilização. Só puderam lhes conquistar esses aproveitados de jonios após que a fúria da natureza lhes deixou na ruína total.

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