domingo, 11 de setembro de 2011

16- O DESCONSOLO

O DESCONSOLO      

Anónimo Anónimo
             Orfeu não quis de jeito nenhum a aceitar, ele era um iniciado na Escola de Quirão e nos antiquísimos Mistérios de Samotracia, que lhe tinham revelado, provocando uma separação temporária de sua consciencia fora do seu corpo, a evidente imortalidade do Ser e sua eterna capacidade de regeneração.

     
Orfeu ficou atónito um momento, enquanto sua amada ia perdendo calor e cor.
Mas enseguida reagiu. Saiu correndo e enviou aos guardas da portería a cavalo para que trouxessem os médicos de palácio. Estes chegaram imediatamente, junto com seus pais e irmãos, porém, tão só puderam certificar a morte de Eurídice.
            
 Negou-se a deixar que sua mente se empantanasse, como as das gentes vulgares, na ilusão materialista da morte irreversible.
 
              Assim, assentou o melhor possível sobre seu cavalo o cadáver de Eurídice, envolvido em mantas, o atou a seu próprio custado para que se mantivesse erguido e cavalgou veloz para a montanha mais alta e nevada dos Rhodopes. Quando o cavalo já não podia seguir, a carregou em seus braços e ascendeu a pé, trabajosamente, até o borde do glaciar, onde depositou o corpo amado em uma urna de gelo natural, cavada com sua própria espada, para que se conservasse durante o tempo todo possível, e o cobriu bem com todos os trozos cortados e com pedras, para que nenhum animal pudesse chegar até ele.
        

Após disso, regressou à corte, recorreu a seus pais, e fez que convocassem aos sábios mais famosos para que lhe dissessem como voltar a Eurídice à vida.        

Mas todos lhe explicaram que isso era impossível, pois o corpo e a mente se disgregan depois da morte e as lembranças da memória individual se esquecem.
          

Todo mundo tentou consolá-lo e  recomendar-lhe resignação. Ele não queria nem o um nem o outro, senão uma solução efetiva. Buscou a mais pessoas de conhecimento, foi visitar aos sacerdotes kabíricos e olímpicos, às sacerdotisas da Deusa, aos chamanes das aldeias remotas, aos santos ermitãos dos montes, aos bruxos e às feiticeiras, e só lhe disseram que tinha que rezar para se desprender de seu enorme apego, que só prolongaria seu sofrimento e dificultaria o desprendimiento do espírito de Eurídice da dimensão material assim que não se dissolvesse. Nada do que tentou lhe deu o resultado que seu coração queria.
 
-Houvesse podido tentar recuperar a tua mulher para a vida enquanto ela fazia o longo percurso entre sua morte e sua chegada à Laguna Estigia –lhe disse um famoso feiticeiro ao que conheceu dois meses depois–. Mas agora já não, tem passado muito tempo, já estará no Hades e do Hades não se sai. Terias que ter me visitado antes.
 
          As companheiras de Eurídice na Fraternidade das Dríades cumpriram sua ameaça e queimaram completamente a granja apícola de Aristeu, quem teve que fugir da região durante algum tempo. No entanto, Orfeu nunca chegou a se inteirar daquele lance, pois ninguém quis aumentar, lho relatando, a lacerante dor que já sentia.

         A Alta Sacerdotisa Ninfa, mãe de Eurídice, arrasada, cheia de sentimento de culpa por sua tolerância, considerou aquela desgraça um justo castigo daDeusa pela incastidade de sua filha, ao ceder ao primitivismo da paixão e renunciar a ser uma Dríade por causa de um común amor humano. Reclamou e reclamou o corpo de sua filha, para fazer-lhe um funeral decente, mas Orfeu negou-se a devolvê-lo. Recorreu ao rei e à rainha, mas nem as pressões mais violentas destes conseguiram que seu filho revelasse onde tinha escondido os restos, pelo que não tiveram mais remédio que adiar e adiar  um processo legal inconveniènte e inaceitável.
             

Quando a Ninfa vió passar o tempo sem que se lhe fizesse justiça, tentou provocar uma indignada revolta de seu Colégio Sacerdotal contra a Coroa, mas as outras Sacerdotisas Maiores não a secundaron porque sua situação política era delicada e uma ação assim podería dar pretexto para ser varridas definitivamente da esfera do poder, em favor dos sacerdotes olímpicos. De modo que ela, isolada e amargurada, se encerrou no universo da oração e não quis, nem receber a Orfeu nem voltar a ter nenhum trato mais com a família real.

De vez em quando o amante inconsolável, igualmente isolado de sua família por seu inadmissível desobediência a seus pais e monarcas, subia só até o glaciar, se assegurando de não ser seguido -não queria que ninguém soubesse onde estava o corpo, para que não o enterrassem sem sua permissão-. Levava-lhe rosas silvestres do vale, falava com ela, retirava um pouco as pedras para a sentir mais perto e lhe dava uma verdadeira esperança ver que o gelo impedia sua corrupção.
A última vez que esteve ali, tinha nevado tanto que custou-lhe muito encontrar aquele lugar, que não queria, em modo algum, chamar tumba. Baixou até o bosque, cortou uma árvore jovem a golpes de espada e subiu-o até o glaciar, afincando-a junto à urna de gelo para marcar o lugar.
-Eurídice, meu amor, juro-te que irei te buscar ao País dos Mortos -prometeu nesse dia com paixão.

Voltou a recorrer a quem tinham-lhe merecido mais crédito entre sábios, chamanes, sacerdotes, sacerdotisas, místicos, feiticeiras e bruxos, perguntando-lhes como chegar ao País dos Mortos, mas não obteve nenhuma resposta prática ou fiável. E todos lhe aconselharam que não teimasse em seu vão empenho, uns lhe recomendando resignação e outros tachándo-o abertamente de louco.


        Com tudo isto, foram passando os anos como se fossem días e ele quase não se dava conta. Seus pais estavam preocupados por sua saúde mental e esperavam que o tempo lhe curasse, mas, ao ver que persistia em seu obsesião, buscaram-lhe tratamentos médicos, que ele recusou.
Por fim, o rei Eagro mandou-lhe chamar pára que falassem muito em sério, deixando, sabiamente, que antes o fizesse sua mãe, a doce Kalíope. Quando ela lhe teve preparado com seus comprensivas palavras de mulher, entrou ele e deu o toque masculino, dizendo que já era hora de que assumisse sua desgraça como um homem, que se deixasse de pedir impossíveis e que aceitasse um trabalho no corte, que estava muito precisada de servidores de confiança para resolver importantes assuntos. Neles poderia canalizar sua energia positivamente.
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-Tu es muito jovem, ainda podes casar, ter filhos, enviudar e tornar a casar mais vezes. Se fosses um rei, ademais, terias a obrigação ante tuas súbditos de fazê-lo. Assim é a vida, filho, pura mudança, transformação, fluidez. Ninguém pode um apegarse demasiado a nada nem ninguém neste mundo efímero e mudante ni, nem, muito menos, ficar preso do passado.
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-Deixai-me, antes, ir consultar ao Oráculo de Delfos -respondeu seu filho finalmente-. Se ali dizem-me que o que pretendo é impossível, voltarei e aceitarei esse cargo.
Seus pais trocaram uma mirada e acederam a sua petição. Estavam seguros de que se o Deus Apolo não conseguia curar aquela alma
atormentada, ninguém mais o conseguiria.


Orfeu viajou, pois, até o Santuário de Apolo em Delfos, situado na Fócide, ao pé do alto e penhascoso monte Parnaso, onde consultou à pitonisa, que fazia de medium canalizadora das mensagens do Deus da Luz e da Cura. De caminho meditou muito bem sobre a maneira na qual poderia enunciar com precisão sua pergunta, para evitar uma resposta cheia de ambiguedades, como as que costumavam dar os sacerdotes.
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Quando chegou ao templo, orou ao filho do grande Zeus, incomparável na pulsação da lira e em adivinhar o destino dos homens e as nações. Depois oferendou-lhe um sacrifício, sem esquecer a nenhuma de suas Musas. Seus desejos tinham-se, finalmente, cristalizado nesta petição:
“Poderei conseguir que os soberanos do País dos Mortos me devolvam a Eurídice para que continuemos em vida nosso interrompido amor até que morramos juntos?”

Após ter mascado folhas de louro em jejúm, sentada sobre um trípode de ferro, à beira de um abismo de onde chegava uma corrente de ar gelado inspiradora, a pitonisa, uma sacerdotisa de mais de cinquenta anos vestida como uma donzela, convulsionou-se e pronunciou alguma coisa ininteligível. O sacerdote-profeta tinha posto o ouvido junto a seus lábios e veio a dar a Orfeu a resposta do Oráculo, que era assim de Surpreendente:
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"Aquilo que a limpa, constante e desinteressada vontade de uma alma humana cheia de amor propõe-se conseguir, se em verdade está liberto do egoísmo da personalidade, do desánimo ou da dúvida, consegue que o universo inteiro, em todas as dimensões da realidade, conspire para sua efetiva consecução"
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