terça-feira, 13 de setembro de 2011

51- O TEMPLO DO AMOR

. O TEMPLO DO AMOR

 Ao contornar a rocha encontrou uma construção muito antiga, feita de pedras ciclópeas em forma de galería dolménica, uma espécie de vagina ou útero de pedra insiro nas entranhas da mãe terra, muito semelhante àquele onde agradeceu sua salvação aos gênios dos Pirineos no cabo de sua chegada a Iberia. Estavam em sua porta três jovens e belas sacerdotisas: por seu atraente aspecto e pelo do jardim que ornaba o exterior do santuário, regado por um arroyuelo que brotava de uma peña e protegido por cuidados setos contra os ventos, as supôs sem dúvida consagradas a alguma deusa da beleza ou da fecundidad. As sacerdotisas atendiam a um casal e a um homem com aspecto de marinho que tinham chegado dantes que ele e lhe receberam com sorrisos doces e com miradas seductoras.
Então, uma das jovens introduziu-lhes na antessala do templo, alumiada por duas tochas, e outra lhes ofereceu água, enquanto esperavam que a soma sacerdotisa estivesse pronta para lhes atender. A parede estava tão só enfeitada por um bajorrelieve no que se apreciava a medialuna, com o sol em cima, navegando como um barco sobre as ondas, traçado de uma forma simples e estilizada. Entre as duas tochas tinha um altar de pedra sem imagens, como era usual entre os habitantes do país de Gal, ainda que esta construção contradizia o que Turos lhe tinha dito a respeito de que não edificavam templos porque, para eles, a natureza toda era seu templo.
Ao cabo de um momento, a pessoa que esperavam se apresentou ante eles: era uma mulher ainda bastante jovem, mas com a experiência de uma velha sábia em seus olhos grandes e oscurísimos. Vestia uma túnica branca muito plisada com sobrevelos transparentes e nacarados que a favoreciam muito e seu tocado, com o cabelo larguísimo das íberas, estava enrollado em duas gruesas trenzas a ambos lados de sua cabeça, de tal maneira que pareciam os cornos de um macho cabrío; o que contrastava com a serenidad, feminidad e doçura de seu rosto e lhe dava um verdadeiro porte elegante e regio, ao que contribuía o misterioso de suas jóias rituales, entre as que destacava um colar jerárquico fato com sete pequenas ánforas de ouro engarzadas, que devia indicar conhecimento e maestría sobre os poderes das águas da vida.
Seu atrativo residia, sobretudo, na esbeltez de sua figura e na expresividad de seu rosto, no que se via um enorme entendimento que em seguida dava confiança. Todos se levantaram assim que chegou e ela recebeu seus saludos com a serena autoridade de quem está acostumada à veneração alheia.
-Sejam bem-vindos ao templo da Deusa, irmãos, onde faremos quanto se possa, com seu auxilio, por devolver a paz e a harmonia a vossos corações. Dedicardes-lhe vossos sacrifícios em seu ara e, enquanto, podreis expor-lhe vossas petições.
Ao iniciar-se a cerimônia, Orfeo deu-se conta de que, apesar de sua aparência arcaica, se tratava de um templo do amor de influência fenicia, como os que tinha em tantos portos e cabos do Mediterráneo, bem servidos por prostitutas sagradas, que realizavam um labor social completamente prática e terapêutica, eficaz, efetiva, higiénica e muito necessária. Realmente, teria gostado mais chegar em de um momento em que não tivesse outra gente, pedir à Sacerdotisa Maior as informações que precisava e se marchar, já que não tinha interesse por seus serviços, mas já estava ali e não ia ter mais remédio que participar em tudo, para não parecer descortés ou impío.
Como era usual na maioria das cerimônias, teve salutaciones, cánticos de abertura, ignição ritual do fogo, preces e sacrifícios sangrentos no ara. O casal tinha levado um cabrito branco, flores, frutos, ungüentos e perfumes; e o marinho, um porco, azeite e vinho. A sacerdotisa degolou aos animais com maestría, os troceó rapidamente, apartando uma porção para o templo, outra para os ofrendantes e uma terça para a Deusa, que queimou ali mesmo, entre libaciones e brindis rituales, enquanto o casal lhe pedia uma filha que continuasse sua linhagem e o marinho rogava que sua longínqua amada lhe seguisse querendo, que a Deusa acalmasse a intensa nostalgia que sentia por ela, que não o deixava viver tranqüilo, que seus negócios fossem prósperos e que sua nave voltasse a sua casa sem dano.

Chegou então o turno de Orfeo e este sacou sua lira e anunciou que ia fazer uma oferenda de música à Deusa. Tocou e cantou em grego o hino a Démeter tal como se fazia no santuário de Eleusis, com o que a Sacerdotisa Maior percebeu imediatamente que se tratava de um iniciado, além de um grande talento musical. Quando terminou, ela mesma lhe alongou uma caneca de ouro, para que fizesse suas libaciones e petições.
Orfeo ofereceu a copa à Deusa, quem, como ocorria entre os Gal, não tinha uma representação em efigie, pelo que tinha que lha imaginar, invisível e omnipresente, dentro e fora de um mesmo. Depois derramou algo de vinho sobre o ara e disse em voz alta:
-Santísima Mãe, concede-me que alguém me indique como chegar muito próximo do Hades no Fim do Mundo, como fazer para que mas abram e como conseguir que me seja devolvida minha amada esposa, arrebatada pela morte demasiado jovem.
Bebeu um sorbo de agradável vinho puro, arrojou algo mais sobre o ara e brindou a copa à sacerdotisa, que bebeu também e a passou aos demais presentes.
Depois, ela se jogou sobre os ombros um manto azul marinho muito luxuoso, ornado com sinuosas ondas e se sentou sobre um trípode ante o ara, voltando a beber. Então fechou os olhos e começou a agitar-se e a tremer como se estivesse sendo possuída por um espírito que a invadia desde acima. Finalmente inclinou a cabeça sobre o peito, igual que se dormisse. Seus acólitas foram a ajudá-la e enquanto uma parecia que a sujeitava, outra lhe colocou ante a cara uma máscara negra arrematada pelos brancos cornos de vaca da lua crescente. Nesse momento, seu corpo se irguió com porte majestuoso e falou pára todos com uma voz diferente, mais profunda e mais solene que a que lhe tinham escutado dantes. As três jovens sacerdotisas queimavam incienso à cada lado dela com suas cabeças inclinadas, de maneira que, por uns momentos, pareceu estar suspensa entre vapores perfumados, como se se encontrasse em outra dimensão.
-É a Deusa quem fala-vos agora -disse. E todos fizeram ante ela um respetuoso saúdo ritual-. Obrigado por vossa veneração e por vossas oferendas, estejam seguros de que atenderei com todo meu amor e justiça vossas petições conforme a vossos méritos. Meus sacerdotisas vos dirão o que lhes inspiro para a cada um de vocês. Recebam minha bênção e que sejais muito felizes.
Todos se inclinaram para receber o abraço simbólico que a Deusa lhes mandava em pé, com seus braços abertos, enquanto as sacerdotisas os incensaban. Depois ela se sentou de novo sobre o trípode e ficou imóvel como uma estátua. Uma das sacerdotisas colocou-se diante, com um paño negro fazendo de cortina, enquanto outra lhe tirava a máscara lunar e atendia sua reanimación. Finalmente, foi retirado o paño e voltou-se a ver o rosto da medium, tal como se estivesse acordando de um pesado sonho.

Quando por fim terminou a cerimônia, a Soma Sacerdotisa ordenou a uma de suas ayudantas que se levasse a uma habitação interior ao casal, a fim de que essa noite cohabitasen no templo, sobre um leito esvaziado em uma pedra sagrada, com toda a assistência ritual necessária para que o ato resultasse fecundo.
Ela ficou atendendo aos dois homens como dona e senhora da casa, junto a uma cordial chimenea acendida em uma esquina do templo e tocou seu cítara enquanto sua segunda novicia tomava um pandero com fitas de cores e dançava no centro da sala uma dança tão grácil como sensual com passos leves, que fazia patente a vibración da Deusa do Amor em toda a estância. A dona falou primeiro, privadamente, com o marinho e chegou a um acordo com ele, depois do qual esperaram a que a jovem terminasse sua dança. Ao concluir, obtida um sinal de asentimiento de seu superiora, a jovem tomou ao marinho da mão e levou-lho a outro aposento, para tratar de curar-lhe, sem dúvida, a terrível nostalgia que tinha pelo amor de seu casal longínquo.

A Sacerdotisa Maior dirigiu-se então a Orfeo, encheu uma copa, ofereceu-a à Deusa, bebeu um sorbo e passou-lho ao bardo; este brindou também ao Invisível dantes de levar aos lábios. Depois ficou observando-a, perguntando com a mirada se poderia informar-lhe.
-Não és um qualquer, visitante, senão um irmão iniciado e um maestro em música sagrada, de modo que acho que posso evitar todo rodeio e toda preparação e te ajudar a reflexionar direta e serenamente sobre o tema que te preocupa, o que tens exposto em tua petição à Deusa Te parece bem?
-Te estarei muito agradecido por tua completa franqueza- disse Orfeo, complacidísimo, ao intuir o nível daquela dama.
-Vem muita gente muito evoluída por este santuário tão famoso, poderás supor, e é para mim um prazer muito grande poder me tirar a aureola de Sacerdotisa Maior e falar com eles de espírito maduro a espírito maduro. De modo que tiro-ma ante ti. Podes chamar-me, simplesmente, Thais, como fazem meus amigos gregos, já que meu nome galaico lhes soa demasiado raro.
-Muito obrigado pela confiança que me dás, Thais, eu me chamo Orfeo e sou de Tracia.
-Acho que entendi, irmão Orfeo, que vens buscando as portas do Hades no Fim do Mundo, com a esperança de resgatar a tua mulher morrida e voltar à abraçar completa, em carne, osso, emoção, intelecto e espírito, como gostavas de amá-la.
-Isso é, exatamente -confirmou Orfeo.
-Bem, pois vamos ir aclarando qüestões, começando pelo menos importante: Tens chegado em verdade ao Fim do Mundo?
-Tenho chegado? -repetiu ele.
-Pois depende de como o olhes. Só se conheces claramente onde é o princípio do mundo e todos seus limites, poderás saber onde está seu final. Tu os conheces?
-Não acho que ninguém saiba responder a isso.
-Então não podes saber onde é o final... quando muito podes dizer que tens chegado às terras do Extremo Occidente do mundo conhecido pelas gentes de teu país, no qual teu país se vê, um tanto presuntuosamente, como o centro de tudo: do mundo e do conhecimento não cries?
-Sim, assim o creio.
-Bom, pois pelas notícias que a mim me trazem os muitos navegantes que aqui chegam, este não é o único Extremo Occidente que têm situado em seus mapas... há pelo menos três Extremos Occidentes que olham o morrer do sol no oceano ao sul de onde estamos agora e outros três ou mais, se navegas para o norte. E todos esses pontos são cabos que se adentran no mar e todos são lugares sagrados, com templos e peregrinos.
Orfeo ficou sem saber que dizer.

-...E ainda que eu nunca tenho saído do país dos Gal –seguiu dizendo ela se sentando mais cerca do bardo-, ainda que eu não conheça o mundo, o mundo vem até minha porta, porque tenho o privilégio de dirigir este templo e, pelas informações que tenho, tão só nesta mesma região há uns doze cabos de poderoso e misterioso aspecto, que olham ao Occidente e a cada um deles poderia ser, a sua vez, o Cabo do Fim do Mundo.
Se percorresse-los de sul a norte, tens o primeiro, separando as duas últimas rias baixas e as terras dos helenos e os celenos... E é muito sugerente, com vistas a dois grupos de belas ilhas, que têm fama de muito sagradas... há quem chama-lhes “as Ilhas dos Deuses”. A esse cabo vão innúmeros devotos a oferecer sacrifícios para pedir saúde, proteção e boa guia, nas singladuras da vida e da morte, aos espíritos bienaventurados.
Em uma dessas ilhas há também um alto alcantilado desde o que se pode ver, bem abaixo, uma entrada perigosa, muito alta e muito profunda, em cujo interior o mar ressoa como vozes cavernosas e infrahumanas. Por essa causa chamam-lhe o Buraco do Inferno.
Mais ao norte chegarias a outro cabo que é ponte, através de um istmo, para uma baía onde há várias ilhas interiores encantadoras. Uma das mais pequenas contém um varro milagroso que regenera a pele e a mantém jovem. Na longa praia do istmo acostuma-se tomar um banho de nove ondas a cada solsticio, como representando a gestación de um novo nascimento no ventre da Mãe Mar... e diz-se que isso é um ritual que foi instaurado pela mesma Deusa da Lua faz muitíssimos anos.
...E segue-lhe outro grande promontório, o mais largo, coberto de antiquísimos monumentos de pedra, ao que se diz que chegou um dos sobreviventes de uma grande ilha que tinha no Oceano, que se afundou; e cujos filhos e netos fundaram uma cidade onde iniciaram a nossos antepassados nos rudimentos da vida civilizada. Até hoje continuam chegando pessoas ali, em busca a mais altos graus de Conhecimento...
Há outro cabo arenoso impressionante, que se pode ver desde aqui, ao outro lado da baía interior e que enlaça com a Sierra do Pindo, palácio da Aurora, onde dizem que tem suas quadras a carroça solar.
Está este onde nos encontramos e está também o Cabo da Nave, o seguinte ao norte, que parece arrematado pela nave de Hermes, o deus que guia às almas dos mortos ao Outro Mundo.
O próximo promontório semeja um touro nadando mar adentro, como se Zeus quisesse levar de novo sobre seus lombos a Europa em direção a uma terra sagrada que tivesse ao outro lado do mar, para Occidente.
E depois dele está um porto rocoso onde alguns marinhos fenicios e gregos diziam que se podem ver as enormes valvas petrificadas, cóncava e convexa, nas que Afrodita nasceu da simiente de Urano e da espuma, ainda que os galaicos preferem dizer que são a barca e a vela de pedra com as que a Deusa Navia vinho da Sagrada Ilha dos Bienaventurados para trazer seus dons aos homens.
Existem uns quatro ou mais cinco ao norte, dantes e após o porto de Brigantia, mas o último, a onde me levaram uma vez, porque “tinha que ir”, me pareceu bem especial: encontra-se no vértice nornoroeste de Iberia, onde há um antiquísimo santuário de Hades cerca dos alcantilados mais altos de toda a costa galaica, “a onde vai de morto quem não foi de vivo”... De modo que todos os cabos que te disse poderiam ser as portas ao Para além, tanto ou melhor que este onde estás agora, o qual, o único que tem de destacable, é que sobresale uns poucos metros mais para o oeste que os outros Te parece esse detalhe muito importante?
-Não... mas não é aqui onde termina o Caminho das Estrelas...? -respondeu Orfeo, abrumado por tantos novos dados que voltavam mais complicada sua busca.
-Termina aqui? Por que? Por que assim o determinaram os vendedores de lembranças? -respondeu ela sorrindo- Dime: onde está este templo? Em sua porta, onde termina o caminho que a ele conduz... ou no ara da Deusa, ou no leito da fecundación sagrada, ou na pileta da purificación... ou no lugar das reliquias, ou nos aposentos íntimos de qual das sacerdotisas... ou nas caricias de suas mãos, ou nas palavras que saem de suas bocas? ...Onde é teu centro sagrado, músico? Em tua cabeça, em tua boca, em tua garganta, em teu coração, em teu sexo ou em tuas mãos? ...Pois igualmente toda a longa costa do País dos Gal pode conter em sim o Fim do Mundo, a Entrada ao País dos Mortos, a Nave de Hermes, as Ilhas dos Bienaventurados ou os Campos Elíseos, os vestígios da Atlántida, a morada noturna do sol ou o Palácio da Aurora, a Montanha dos Deuses, o Laberinto do Destino, o Palácio Submarino do Deus do Mar ou o lugar de nascimento da Deusa do Amor e da Vida, e toda a mítica e o simbolismo do Fim do Caminho... Sabes que é o que se levam de aqui os peregrinos como lembrança de sua peregrinación até o oceano?
-Uma concha destas praias, não é verdadeiro? -respondeu Orfeo.
-Isso é, uma vieira ou venera, uma concha que tem que ver com a palavra via, ou caminho e com o sexo de Afrodita, deusa do amor, da fecundación, do fluxo da vida e da espuma do mar e das águas vaginales e placentarias que conduzem ao outro mundo, Senhora do Mar e da noite, Magna Mater, Lua Cheia grávida do Sol que engoliu ao entardecer, Perséfone, que o transmutará, Aurora que o parirá ao amanhecer, Isis Pelágica dos Mil Nomes, morte e renacimiento, Estrela Matutina que anuncia o novo sol, senhora dos cabos, que são penes que penetram no mar, origem da vida, Porta da Morte, Inverno e Primavera... Astarté para os fenicios, Afrodita para os gregos.
-Todo isso significa essa concha? -assombrou-se o bardo.
-Todo isso e mais ainda, porque a concha simboliza o contenedor original das águas da vida, a Deusa, e dizer a Deusa isto é O Tudo. Para nós os Gal, a concha é Navia, a quem está dedicado agora mesmo este templo, que, no entanto, foi construído por um povo antiquísimo, vencido por quem foram vencidos pelos muitos vencedores que conquistaram este país dantes que o conquistassem os Gal, povos e construtores de quem não sabemos nem seu nome, nem sequer o nome da deusa ou o deus a quem dedicaram este santuário... -parou, porque viu que Orfeo se encontrava completamente desconcertado - Mas tu és um iniciado, te vais combinar com o símbolo ou com o que o símbolo significa?
-Com o que significa, naturalmente.
-Tens visto alguma dessas conchas que levam penduradas de seu peito os peregrinos quando voltam a suas casas? Fixaste-te a forma que lhes deu a natureza? Que desenho ou que relevos contém?
-Pois... acho que leva um verdadeiro número de estrías que se abrem a partir de um ponto –recordou o bardo-. Ou, visto ao invés... uma série de canais que, vindo de diferentes pontos de sua periferia semicircular confluyen em um centro liso e cóncavo.
-Muito bem explicado... doze estrías ou canais ou caminhos, exatamente, que se abrem ou que confluyen a partir de um ponto, como as numerosas vias que confluyen no caminho sagrado que leva ao centro, como as possibilidades que se lhe abrem em leque ao Caminhante quando chega ao País do Fim do Mundo, ainda que a maioria deles, simplesmente, se conformam com ir ver esse feio faro e regressar rápido a casa, e inclusive alguns nem chegam ao mar, lhes basta com tocar a porta do país dos Gal e voltar, como desde a meta de uma carreira, sem ter entrado em sua magia...
... Tu és um iniciado nos Antigos Mistérios, sabes o que significa o número 12, a carta egípcia do Pendurado, entrega total, aceitação, se faça em mim tua vontade, antessala da morte... ou o 1+2=3, a carta da Emperatriz, Afrodita, fecundación, gestación?
-...É um tema para muito meditar... respondeu o vate, sentindo-se verdadeiramente cansado. Já era muito tarde e tinha caminhado durante boa parte do dia.
-Muito bem, pois já o meditarás, se te lembras, quando estejas sozinho, amigo meu –ela percebeu imediatamente seu cansaço e decidiu mudar de tema-. Mas agora, acho que convém que passemos de símbolos e vamos ao tangible.


Thais levantou-se e apagou com um capuchón de metal uma das duas tochas e a sala cobrou um aspecto mais acolhedor, íntimo e profundo. Depois retirou de seu pescoço seu pesado colar jerárquico e guardou-o, com o qual pareceu se encontrar mais cômoda e familiar. Após colocar sobre um criado-mudo uma fonte de frutas e doces e de encher a caneca de vinho, bebeu e tendeu-lha ao bardo com um sorriso.
Orfeo provou-o, encontrando-o excelente e, depois de de um novo sorbo, deixou que seu paladar se deleitasse também com um dos pasteles de mel que tinha ofrendado o casal que desejava ter descendencia. Que bom estava! Acompanhou-o com um pouco mais daquele vinho e sentiu que suas energias começavam a reconstituirse... a sacerdotisa pôs dois troncos de lenha no fogo e a estância se caldeó de repente.
-Para mim, as portas do Hades que dão passo de um tipo de vida a outra diferente através de uma morte aparente -começou a dizer, outra vez bem perto de Orfeo, em voz mais baixa e com doçura, lhe olhando bem aos olhos para recapturar sua atenção-, são a cópula que expulsa ao semen desde o lugar onde vivia até dentro da concha de uma vagina e um útero, onde morrerá engolido por um óvulo, o qual morrerá para se converter em um feto... E também o nascimento, que é a morte do feto e sua nova vida em um menino. Seguramente quando esse menino cresce e morre, também o faz para renacer revestido de outra forma.
Durante toda tua infância eras inconsciente da morte –a voz da sacerdotisa quase parecia vir de dentro do próprio Orfeo agora-. Mataste tua infância e entraste no plano do eu adulto e na formação da personalidade individual ao perceber que era inevitável. Mas a morte deixará de importar-te quando passes do eu individual ao Subsconsciente Coletivo como identificação.
Para mim, também, a única imortalidade real é a da linhagem, a descendencia... –seguiu dizendo- Dentro de ti, hábil músico, seguem vivendo teu pai, tua mãe, teus avôs e toda tua ascendência, desde faz muitas gerações. Dentro de ti –e tocou um momento seu ventre- se acumula toda tua linhagem e sua memória e seu passado, sempre disposto, pelas leis da vida, a projetar ao futuro desde o presente e a se perpetuar.-
-Todo isso já o sei –disse Orfeo devolvendo à bandeja um segundo pastel, que só por gula tinha tomado-. Eu o que quero é recuperar a minha esposa, poder a ver, lhe falar, a tocar, a abraçar...
-Tua esposa é uma ilusão, querido irmão –disse ela com um sorriso comprensiva-. Mal algumas lembranças agradáveis aos que está apegada tua memória, a cada vez mais falseados pela nostalgia. Também tu és uma ilusão e o que tu vês em mim e toda nossa aparência individual, são ilusões. O indivíduo não é senão uma aparência efêmera, circunstancial: em teu país, os novos costumes fazem que dois indivíduos se conheçam, se apaixonem e se casem. Vivem juntos durante dez anos e em um dia um deles se levanta e já não reconhece ao outro como a pessoa da que se tinha apaixonado. O indivíduo é fruto do momento, e rapidamente muda de forma. Mas algo há em ti mais autêntico e permanente que o indivíduo.
-A que te referes?
-Refiro-me à linhagem, ao ser coletivo conteúdo em tua semente –disse ela-. A força das leis do amor faz que o efêmero veículo de um indivíduo busque seu complemento adequado em outro ser que supõe uma corrente de linhagem de diferentes qualidades, para seguir se perpetuando durante séculos. E essas leis do amor, são, em seu esencia, as da sobrevivência da espécie, que é o que conta. Para realizar uma função tão importante, o Ser Espécie não pode confiar no livre albedrío humano, e então se serve do estímulo cego do instinto, que joga com as aparências e as ilusões de duas formas que mal dependem das circunstâncias, de enganosas percepciones do puro momento, de um manojo de cambiantes lembranças ou anseios idealizados... pois isso é o que são, e não outra coisa, os indivíduos que portam as sementes da vida.
-No entanto, ainda que eu o respeite, o cuide e o faça se perpetuar -respondeu Orfeo-... não posso amar demasiado à linhagem ou à espécie em si mesmos, senão em seus indivíduos concretos, as pessoas. Eu amei a meus pais e a meus avôs, às gentes de meu clã e de minha tribo, a meu país. Eu amo a minha esposa, eu amaria aos filhos e netos que tivéssemos tido... eu amo às pessoas com as que me sento emocionalmente identificado, especialmente às que têm compartilhado comigo, ainda que não sejam de minha linhagem, amo a meus amigos, que são gentes de diferentes linhagens e nações... Eurídice era de uma linhagem diferente que o meu, mas se tivéssemos tido filhos ficaria fundado uma nova linhagem... -Orfeo parou de repente, acabava de dar-se conta de algo.
-O que um filho é, demonstra que o que se importa à vida não é a continuação de um indivíduo, nem sequer de uma linhagem determinada, por grande que seja o orgulho da cada tribo ou nação e o de seus deuses raciais, senão a eterna mistura das múltiplas linhagens do único Ser... – disse ela com doçura, o olhando muito adentro dos olhos, nos que tinha percebido o que Orfeo descobrisse-. O que se importa à vida não são as formas efêmeras dos indivíduos ou dos povos, senão que a vida, que ela mesma, segua eternamente...
A sacerdotisa levantou-se e foi movendo-se vaporosa, como flutuando, até uma hornacina que tinha na parede, de onde trouxe uma máscara com cornos de touro, em forma de sol; pôs-lha adiante do rosto, para que Orfeo a visse bem e depois se inclinou e lha colocou ao bardo, cobrindo sua cara.
Voltou a cruzar a estância em passos lentos que pareciam de dance, se pôs sua própria máscara de lua e sua mantón azul marinho com ondas bordadas e regressou felinamente ao lado de Orfeo.
-À Vida não se importa com os indivíduos –repetiu-, para ela todos os homens da Espécie Humana são só o deus Sol e todas as mulheres da Humanidade são só a deusa Lua. Enquanto o deus Sol e a deusa Lua continuem amando-se, ela estará satisfeita, porque a Vida seguirá, ainda que os indivíduos sejam ondas imprecisas do mar da vida que vem e vai, no que tomam forma em um momento, para desaparecer no momento seguinte.
Depois acendeu um lustre de azeite dantes de apagar a tocha. Com ela na mão, fez se levantar a Orfeo, atirando dele com cortês macieza:
-Venham, Senhor do Sol, sejam tão gentil de permitir que a Senhora da Lua vos alivie das fadigas de vosso larguísimo dia de viagem com um banho reparador... mas não deixeis de trazer com vos esse magnífico instrumento.
Ela estava verdadeiramente formosa e sugerente, Orfeo tomou sua lira e se deixou conduzir da mão; por trás de sua máscara sentia-se outro e sua veia de artista, ajudada pelo vinho que tinha bebido, se animou ante a perspectiva da comédia.

Depois de uma cortina, tinha um corredor com várias portas; por uma delas passaram à sala da pileta purificadora, uma pequena piscina à que chegava, encañada, a água do ribeiro, justo até o borde. Tinha um forno de lenha embaixo cujas brasas mantinham-na algo quente. Alguns capullos de rosas silvestres flutuavam sobre as perfumadas águas. A água que transbordava se derramava em uma segunda pileta, mais pequena, onde ia enfriando.
Dantes de que tivesse tempo do pensar, a sacerdotisa, com naturalidad, já lhe tinha ajudado a se desprender de todas suas roupas, ainda que lhe conservando a máscara sobre a cara, e o tinha feito meter no água e recostarse contra a parede interior da piscina, cujo suave calor o relajó e lhe soube a glória.
Como se sente o Senhor do Sol entrando nas águas do mar ao entardecer? -perguntou ela desde por trás de sua máscara, com o tom divertido de uma menina traviesa, enquanto jogava salgues ao banho, que formaram delicadas espumas sobre a pele de Orfeo. Ela tomou água morna em uma vasija, lhe misturou um perfume líquido e a foi arrojando com graça sobre a cabeça e ombros do encantado tracio.
-...Divinamente, Senhora da Lua... -disse ele com verdadeiro prazer-... mas não sê se poderei vos pagar tantas e tão boas atenções.
-Não vos preocupeis por isso, pagareis com vossa lira, genial Apolo, pai das Musas -ela se tirou seu manto azul, ficando vestida com os sobrevelos e a túnica e tomou sua própria cítara-... Mas dantes escutem um pouco a minha.
Sem alçar muito a voz, a sacerdotisa cantou uma velha canção grega que narrava os amores do sol e do mar, sua mútua atração; o intercâmbio de suas energias contrapostas e complementares, que enrojecía de paixão o poente. Sugeriu o hervor do disco solar ao penetrar o amplo seio do mar e depois, o abraço e o apagamiento. Convertida o mar em noite, foi-se alçando então a negra sombra sobre a suave elevação, nota a nota, da cítara, e imperó sobre o mundo escurecido. Mas estava grávida do sol e seu ventre fecundado converteu-se em uma lua brilhante, através da pele e os vai-os de nuvens da noite, que crescia e crescia, se fazia cheia e minguava...
Ao chegar a esse ponto, Thais passou sua própria lira a Orfeo, pediu-lhe que seguisse improvisando sobre sua canção e lhe acompanhou com a cítara até que ele pôde repetir afinadamente seus últimos conformes e os converter em melodia.
-Agora é meu turno de relajar -disse com voz sonriente. E foi-se tirando os vai-os nacarados e depois a túnica com estudada graça e acalma, como se fosse a lua assomando entre as nuvens noturnas e, quando todos seus encantos de mulher ficaram à vista do bardo, esplendorosos, retirou a máscara, desfez as duas trenzas que se enrollaban a ambos lados de sua cabeça e ficou de novo parcialmente vestida por sua longa cabellera íbera, que a cobria até justo em cima do pubis sabiamente depilado.
Orfeo sentiu que aquele velo natural saindo de embaixo da máscara (que ela em seguida se tinha ajustado de novo sobre o rosto), lhe excitaba bem mais que o poder a olhar completamente ao descoberto. Mas depois a mulher elevou ao mesmo tempo ambos braços, jogou o cabelo para atrás, como se fosse uma camada, em um gesto tão delicioso que resultava impossível saber se era espontáneo ou muito ensayado e, sem os baixar, foi metendo seu belo corpo nu baixo a água da piscina, em frente a ele, e ficou gozando da tibieza da água, recostada, enquanto o bardo, depois de uma inclinação de cabeça em sua homenagem, retomava a canção para ela.
Cantou a beleza da lua menguante, a beleza luminosa do corpo lunar grávido de sol que se vai despojando do manto negro da noite à medida que se reclina sobre as montanhas, cantou o temor e as dores do mar-lua-terra, até que se abre completamente na alva, como uma rosa madura, e deixa que saia de sim o sol renacido, o eterno viajante invicto, que em um dia mais começa a percorrer o firmamento em sua carroça de ígneos cavalos.
-Morreu a lua! –disse ela, sorrindo quejumbrosamente desde a água quando ele arrematou seu canto- Viva o sol!
A cume arborizada de seu monte de venus, a diferença de mata-las púbicas naturais e selvagens das caçadoras que tinha visto bañarse no rio grande, estava artisticamente recortada em forma de um triángulo estreito que apontava como uma seta para aquela rosada gruta de delícias, porta da vida, à que a natureza empurra a todo homem em um instintivo impulso de matar a ânsia contínua em seu interior, como se também fosse a porta da morte. Mais abaixo da máscara negra com coroa de crescente lunar que ocultava seu rosto, a redondez invitadora de seus peitos sobresalía sensualmente sobre a superfície espumosa e perfumada da piscina; fortemente contrastados pela luz da vela, viam-se apetitosos, coroados por duas moras maduras. Nesse momento seus pés rozaron os muslos de Orfeo e ele sentiu um estremecimiento de prazer e umas vontades quase incontenibles de responder.
Uma parte muito grande de Orfeo, excitada pelo jogo e pela magia da noite, clamava por avançar para ela, a Mulher Genérica, tocar suas cálidas curvas, besarla e estrecharla entre seus braços, agarrar seus caderas, a atrair, penetrar com delicada força nela, tomar seus prazeres de hembra e se deixar tomar até apagar sua terrível carência de Homem Genérico, honrar ao instinto e à Vida, deixar aquela louca busca, derramar a tensão acumulada e relajar, relajar, relajar, desaparecer...
Mas por trás da máscara e da excitação natural de seu sexo, outra parte de si seguia cheia de Eurídice e se negava a desterrar a pura beleza de sua presença, ainda que fosse intangible, por causa de um vaciamiento momentáneo que se ia levar, com a ânsia, o doloroso empenho de ser fiel a sua lembrança...

Tirou-se a máscara de Sol e meteu sua cara e sua cabeça baixo a água duas vezes. Depois se recostó de novo e disse, sorrindo, mas com firmeza:
-Não tem morrido a Lua, segue vivendo dentro do Sol todo o dia, igual que ele segue vivo dentro dela toda a noite.
Thais olhou desde sua sabedoria, muito adentro de seus olhos, compreendendo: Orfeo falava de seu Eurídice.
E alegrou-se. Era bom que tivesse no mundo homens capazes de amar daquela maneira. Talvez chegaria um homem assim a sua vida dantes de que o tempo lhe fizesse perder sua beleza.
Tirou-se a máscara e ficou olhando-o intensamente. Ele a olhava da mesma maneira, se comunicando ambos a nível de alma, enchendo a piscina toda com sua simpatia.

A sacerdotisa irguió sua felina esbeltez e deixou que chorrearan cascatas espumosas de suas formas, como se se despedissem do espectro do desejo. O bardo pensou que à água rasgada dela, como a seu próprio corpo, lhe ia doer a ausência de sua beleza.
Saiu da piscina e envolveu-se singelamente em uma toalla. Assim coberta e com os cabelos molhados, como uma rapariga qualquer, se inclinou pelo borde e abraçou a Orfeo, apoiando a cabeça sobre seu ombro, com casta doçura, bem perto de seu ouvido.
-Vejo a tua esposa em ti, irmão da alma, ela é formosa e está muito viva. E o seguirá estando enquanto tu não renuncies a ela.
- Ele devolveu seu abraço ternamente -Sim, o sei, irmã querida... Obrigado por dizer-mo!
-É minha obrigação dizer-to, sou uma Sacerdotisa do Amor... Teu amor está provado e bem provado.
Foi separando-se dele, muito lentamente, até de novo erguirse. Depois pôs-se seu manto azul sobre a toalla, colocou-se a máscara de lua, encheu uma vasija com a água morna da piscina e voltou a acercar-lhe-lhe.
-A Deusa do Mar do Fim do Mundo abençoa tua determinação e tua firmeza, e faz que passem nove ondas sobre ti, para que saibas que tens sido limpo e renovado... Inclina tua cabeça a ras da água.
-Uma... -disse enquanto o duchaba desde o recipiente e voltava-o a encher- ...Dois...
E assim até nove vezes. Depois deixou a vasija, tendeu-lhe sua mão e ajudou-o a sair da piscina, dando-lhe uma toalla para que se envolvesse. Depois jogou-se para atrás e tomou a tocha em sua mão.

-O homem velho tem morrido em ti, se ficou nessas águas –disse solenemente-. Recicla a fundo a experiência de tua vida anterior, para que possas ser admitido à seguinte. Que teu renacimiento gere sobrado fogo de amor, para que siga sustentando tua nova vida e a de tua mulher amada em tí.
Tomou uma lamparilla de azeite de um estante e acendeu-a na tocha. Entregou o lustre a Orfeo e, ainda com a máscara posta, se dirigiu à porta.
-Eu me retiro já –disse desde ali-. Não demorará muito em começar a alva. Recomendo-te que após te vestir e tomar tuas coisas te vás descansar um pouco junto à sala da chimenea onde estivemos dantes, que está ao final do corredor, por trás da cortina. Mas, assim que comece a clarear, sal, fecha a porta do templo a tuas costas e baixa pelo caminho que dá ao oriente. Quando chegues abaixo, encontrarás que desde esta cume, o caminho ascende a outra, sempre para o nordeste, onde se alça um grande roble solitário ante uma rocha. Ali estará o “Homem Do Roble”, recebendo ao amanhecer. Senta-te em silêncio a seu lado, que esse homem sabe muito sobre o que te interessa.
Saiu ao corredor, desde ali voltou-se para ele por última vez. Não disse nada. Só se tirou a máscara, o olhou com olhos úmidos de cariño, já não o da Deusa, senão o da mulher, pôs uma mão sobre seu peito e depois a abriu para ele, enquanto Orfeo cruzava as duas sobre o seu e se inclinava, cheio de agradecido amor.


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