segunda-feira, 12 de setembro de 2011

39- INTENSIDADE

INTENSIDADE

 Anónimo Atalanta

Capítulo aberto à criatividade, para contar distintas histórias de gente corriente, nas que não apareçam magos, nem guerreiros, nem deuses nem dragões.


Orfeu apressou sua caneca e respondeu com um sorriso:
-Se permites-me, Jacín, te contarei uma história assim, que não se sabe quem a compôs nem onde e cujos protagonistas não têm nem nomes. Em minha terra, Tracia, chamamo-la “a Mãe de Todos os Contos”.
-Pois venha essa história -disse Jacín, brindando para o tracio.
 

-Um homem jovem decidiu casar ao modo grego com a mulher que amava, para poder desfrutar de sua doce companhia sempre que o desejasse -começou a contar Orfeo- e ainda que pouco antes tinha formosos sonhos sobre as empresas e façanhas que aspirava a realizar com seus talentos, não teve ânimo, disciplina ou firmeza para os manter, deixou de confiar em si mesmo e na vida e se submeteu, para poder sustentar as obrigações materiais que implica manter uma casa, um lar e uma esposa, a aceitar um trabalho mau pago ao serviço dos sonhos de outros, como tantas pessoas fazem, no qual lhe explodiam tão duramente e tantas horas que, quando saía de ali, estava demasiado cansado para desenvolver sua própria criatividade, estava demasiado ofendido para pensar em outra coisa que no que deixava que lhe fizessem, e só lhe apetecia tratar de afogar suas frustraciones em vinho.
Recordava com nostalgia o livre que tinha sido quando não tinha compromisso com ninguém e percorria o mundo como um nómada, desfrutando de suas belezas sem necessidade das possuir nem as defender e lhas arranjava para conseguir alimento a cada dia coletando ou caçando, sem ter que dedicar mais de uma interessante hora ou duas ao resolver. Recordava como dormia de um tirón em qualquer lugar quando estava cansado e como com freqüência conseguia os favores de alguma mulher que ficava prendada de sua juventude e de sua liberdade e que passava com ele uma ou duas intensas noites de prazer, ainda que depois o punha na porta com um beijo, dantes de que chegasse o homem vulgar que assegurava em seu dia a dia com seu esforço.
...E agora via-se obrigado a manter um tipo de vida na que sua esposa parecia precisar uma inacabable pronta de objetos de consumo para se sentir minimamente satisfeita e segura, inmersos ambos em um aburrido sedentarismo no que a cada dia era igual ao anterior e ao seguinte, engranados em um sistema social que vendia a ilusão de ser dono de algo mas que, em realidade, fazia pagar continuamente impostos, tributos e hipotecas pela ilusoria posse e desfrute de bens que a natureza tinha criado para o livre desfrute de todos.

No início, tinha aceitado encantado todo aquilo em troca da beleza de poder regressar de noite a sua própria casa, cenar junto a sua mulher em um ambiente íntimo, belo e confortable, se deitar depois com ela e gozar juntos as delícias de seu amor antes de ficar placidamente dormidos. Mas depois daquilo, à medida que seu trabalho ia-se fazendo a cada vez mais opresivo, regressava a casa tão cansado que só lhe apetecia cenar, gozar e apagar cedo. À manhã seguinte, seus momentos de satisfação apareciam-se-lhe como totalmente descompensados em frente ao duro e continuado esforço que tinha que despregar para os conseguir e sua mulher, ademais, não parecia corresponder a sua paixão por ela com o mesmo entusiasmo alegre e sensual que dantes.
Sentia-se preso em uma grande armadilha, enganado por uma conspiração de toda a comunidade, que tinha escolhido uma inepta maneira de viver e que estabelecia que “aquilo” era a normalidade e a realidade; uma conspiração que afirmava que o que ele vivesse dantes, fundamentalmente a busca do Amor em Liberdade, só fazia parte de um período de inmadurez adolescente pelo que tinham passado tanto a humanidade como o indivíduo, em etapas muito primitivas que era ilusão tratar de repetir.
E a cada vez era mais infeliz e a cada dia bebia mais e sentia-se mais distante de sua mulher e a cada vez tratava-a com menor simpatia quando voltava a casa.
Então começou a considerá-la a causa de sua escravatura, a vê-la como a sirena que lhe tinha atraído à armadilha com a ilusão de uns encantos que já rara vez lhe compraziam para valer. Começou a encontrar estúpido e convencional todo o que ela falava, ou a entrever, depois da cada uma de suas palavras, os reproches que ele se lançava a si mesmo por dentro... e isso lhe obrigava a estar continuamente enfadado consigo mesmo, por rebajarse a fazer todo quanto estava fazendo só para tratar de manter aquela situação inaguantable...
Uma noite na que ela o desprezou como amante e o chamou bêbado, se encolerizó, a insultou e se lhe escapou uma bofetada. Ela se encerrou em um quarto, chorou e depois passou em vários dias o ignorando como se não existisse.
Ele, muito arrependido, sentiu reavivar seu ternura e sua compaixão por ela; cortou com a bebida por uma temporada, a cortejó outra vez sinceramente e fez-lhe mil presentes e promessas para que lhe perdoasse. Ao final, emocionaram-se juntos e de novo fizeram o amor como se fosse a primeira vez.
Mas ao cabo de um tempo voltou a ser dominado pela rutina e a beber. A partir daí, foi-se fazendo um costume que, quando regressava bebido, tentasse se deitar com ela naquele estado e a desfrutar (que para isso passava no dia trabalhando), dantes de derramar toda sua energia, apagar e ficar dormido.

E ela, que ainda o queria, agüentava aquela maneira torpe, posesiva, instintiva e cega de ser amada, compreendia sua frustración e se concentrava na segurança de que, ao final, todas as circunstâncias que a provocavam mudariam e ele voltaria a converter no jovem generoso, nobre e valente de quem se tinha apaixonado.
No entanto, era uma maneira de viver que não tinha qualidade, de modo que voltou a lhe encher de reproches, o que provocou que ele montasse em cólera e lhe colasse de novo, desta vez mais duro.
Não fez caso das amigas que, ao descobrir a marca do golpe em sua cara, a aconselhavam denunciar aos poderes comunitários ou, simplesmente, regressar à casa de sua mãe. Apesar de todo amava àquele homem e tinha a firme convicção de que um amor como o seu acabaria por vencer qualquer obstáculo. Também não prestou-lhes ouvidos quando lhe disseram que o seu não era amor, senão estupidez que prejudicava a todo o coletivo, porque a regeneración de um macho alcohólico que se tinha acostumado a maltratar era impossível e em outros tempos, menos ignominiosos que os atuais, quando ainda imperaba o matriarcado com todo seu poder, as guardiãs da Deusa o tivessem castrado antes de desterrar do território da tribo, do mesmo modo que se fazia com os violadores dantes de descuartiza-los.

Estava segura de que tudo tinha uma forma de se solucionar e que ela a encontraria. Uma forma mental negativa tinha-se adueñado de sua alma amada. Não se tratava de renunciar a sua alma amada, se separando e abandonando ao monstro que a possuía, senão de transmutar, de voltar positiva a forma mental que estava aprisionándola. Se ele fosse seu filho jamais o abandonaria, por muito doente ou perdido que parecesse se achar. Como não ia fazer o mesmo por seu marido?
Mas a coisa ia a pior e em um dia deu-se conta de que estava grávida e que seu filho corria um perigo mortal se seu marido voltava a encolerizarse e se lhe escapava um golpe em seu ventre. No entanto, pensou que sua venenosa frustración só ia aumentar se se escudaba depois do fato da maternidade para lhe exigir deter seus maus hábitos. Precisava outro tipo de táctica.
“Como criou-se esse amasijo de autoconmiseração que se apoderou da cabeça de meu homem?” –cavilou-“...A base de repetir-se muitas vezes, em sua maneira de olhar-se, os mesmos argumentos pelos que se obriga a renunciar a cumprir seus próprios objetivos, deixando de ser ele mesmo, para se adaptar às conveniencias desconsideradas de quem lhe cobrem suas necessidades básicas. Isso é um edifício de palavras, de sentimentos e pensamentos, que ele tem estado construindo em sua mente, uma criação artificial, uma obra de arte mesquinha e maligna que lhe desviou de seus verdadeiros objetivos nesta vida. Terei que atacar a esse demônio que está dominando sua atenção.”
“E como farei?” perguntou-se. E passou no dia todo imaginando táticas mas, por muito sólidas e justas que lhe pareciam a sua razão, a intuición as recusava por inseguras, duras ou extremas. Finalmente, e dantes de aceitar sentir-se débil, ignorante e impotente, decidiu apagar sua agitada mente por um momento, encomendou-se à Deusa, pedindo luz ao Universo, e jogou-se a dormir uma siesta. Quando acordou, a Sabedoria de seu gênero, dentro de si, já tinha colocado um bom conselho na parte mais visível de sua mente:
“Atacarei a esse demônio que está dominando sua atenção com suas mesmas armas, terei que construir eu também um edifício mental, uma obra de arte enche de luz e muito atraente para todas suas percepciones, que tenha força bastante como para poder resgatar sua atenção de todas essas sombras criadas por sua reconcomerse, das que se voltou um adicto”.

De modo que, essa noite, quando ele entrou na casa com verdadeira vontade de descargar sua raiva acumulada ante a “porquería de vida que tinha que viver por causa de ela”, em lugar de se amparar em uma distante reserva, como costumava, acercou seus olhos aos dele sem medo, lhe sorriu e lhe disse:
-Escuta-me, meu amor, porque tenho algo muito interessante que te contar.
E começou a relatar-lhe um conto de uma maneira atrainte, narrando-o com sua mais bela voz e expressando-se com todas as obrigado de seu corpo e o foi, depois, unindo de forma hábil com outro e esteve captando sua atenção, enchendo a mente embriagada de seu marido com aquelas histórias sem deixar que se acabassem do tudo, até que se converteu na heroína do conto e ele em herói. Finalmente, colocados ambos nessas novas personagens, passou do conto à caricia e alimentou sua imaginación, sua sensualidad e sua ternura até que ficou dormido sobre seu peito.
Ao dia seguinte, ela andou recolhendo outras histórias dentre a gente que conhecia e quando regressou pela noite, seguiu contando o conto onde o tinha deixado e o enlaçando com outro, ou improvisando... ou convidándole a que ele improvisasse possíveis saídas para os nodos aos que chegava em sua narração. Assim, a cada dia, enchia de interesse criativo o tempo que estavam juntos, o fazendo crescer tanto em intensidade que compensava todas as horas nas que estavam separados.
Por outra parte, ela foi escolhendo ou adaptando, a cada vez com maior cuidado, os contos que mais o estimulavam a reflexionar e se organizar, a fim de poder ir em busca de seus objetivos pessoais. “Contos para animar”, chamava-os ela.
E aquilo mantinha sua atenção ocupada também durante o dia e fazia que, em lugar de se queixar e autocompadecerse, voltasse a crer em suas possibilidades de realização e estivesse atento às oportunidades para o conseguir.

Até que decorreram meses e ele tinha ido deixando de beber e não a voltou a colar durante todo esse tempo. O fato de que lhe pusesse a interpretar o papel dos heróis legendarios tinha elevado seu autoestima e as moralejas dos contos fizeram que fosse substituindo sua amargurada e obsesiva frustración por outros valores e interesses.
Ela jamais lhe perguntava de forma direta se se tinha preocupado de semear adequadamente para, à longa, recolher; mas não parava de lhe contar histórias de personagens que o faziam, que perseveraban e que acabavam obtendo bons frutos. Aplaudia todos os passos que ele dava nessa direção, sem pretender o dirigir nem meter em seu terreno, de maneira que pudesse sentir, tanto suas buscas ou seus lucros, como manobras totalmente pessoais.

Uma noite, o homem acabou por dar-se conta de que sua mulher estava claramente grávida e quando jogou contas para calcular quando tinha começado a gestación, percebeu de repente o verdadeiro heroísmo e a prova de amor e de lealdade que sua mulher lhe tinha dado, bem como sua habilidade, representando discretamente o papel de musa inspiradora, o mais maravilhoso papel que uma mulher pode representar para seu homem, a fim de deter seus maus hábitos e transmutarlos, sem ter que pôr ao menino por diante, como uma inocente vítima com a que lhe jogar em cara sua covardia. Essa noite deixou a bebida por completo.
E quando o filho por fim nasceu, ele se voltou o melhor dos pais e depois o melhor e o mais apaixonado dos esposos, se concentrando tanto em melhorar sua situação que acabaram, inclusive, lhe sobrando algumas poupanças e realizando um excedente de produção própria no tempo que dantes malgastaba na taberna, e elaborando cuidadosamente boas estratégias para ir atingindo, por fases, seus objetivos. Com o que pôde, finalmente, independizarse, se fazer seu próprio chefe, conseguir aliados e encontrar a maneira de realizar seus sonhos de juventude, os convertendo, ao mesmo tempo, em sua fonte de rendimentos e de progresso...
-E aqui acaba-se “a Mãe de Todos os Contos”, sem que aparecesse, quase, nenhum dragão, colega Jacín –arrematou Orfeo seu relato.

O bardo do Pirineo ficou um momento em silêncio, degustando o que acabava de escutar. Depois felicitou-o com a mirada e disse sorrindo:
-É a história de muitos de nós, gente comum, quando naufragamos por escutar as sereias da autoconmiseración e da desesperanza... A cada um acaba obtendo aquilo no que põe toda sua atenção, amigo, nos convenha ou não, mas faz falta lhe jogar valor, amor, imaginación e constancia para merecer resultados positivos e os conseguir.

-Valor e amor constante é o mesmo que fé. “Quem mantém-se na fé de que pode o conseguir, o consegue”, dizia meu maestro Quirón. Isso é a justiça da vida para os animosos.

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