terça-feira, 13 de setembro de 2011

49- O SONHO


PARTE SEXTA:
PASAGEM AO ALÉM
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O SONHO

    




  Após separar-se dos Brigmil, Orfeo seguiu caminhando só por aquela terra de inacabable verdor e de nuboso céu durante vários dias, acostumado já a uma hospitalidade fácil por parte dos nativos. Bastava arrimarse a uma casa qualquer à queda da tarde para que, simplesmente, seu aspecto de peregrino lhe valesse um convite a cenar, a conversar, dentro do possível, e a dormir com a família anfitriã sobre os jergones de palha que cobriam o solo.
À medida que penetrava ao interior do país dos Gal, as paisagens iniciais de montanha foram cedendo lugar a amplos vales entre colinas tupidas de bosques, dos que, de vez em quando, saía correndo um gamo, assustado por seu passo. Muito com freqüência, também, escutou perto ao jabalí e continuamente a um sem fim de vozes de pássaros. O tempo era muito caprichoso e o mesmo llovía que luzia um sol radiante.
Uma manhã especialmente soleada chegou suando até as orlas de um largo rio, o maior que tinha visto até então em Oestrymnis e um dos mais belos, em um país no que as correntes de água faziam pensar no que deveu ser a Idade Dourada da niñez do mundo, quando a natureza era pura, incontaminada e em todas partes espléndida.
Tinha ante o caminho uma ponte ciclópeo de seis pilares de pedra antiga cruzados por armazones de tabelas mais modernas, que alguma Mãe de tribo ou rainha caritativa, ou talvez várias juntas, mandaram construir fazia muito tempo para permitir a livre circulação pela Rota das Estrelas. Quem fosse, deixou uma marca gravada no primeiro pilar: uma roda com três aspas em forma em media lua que pareciam girar.
Orfeo teve um agradecido pensamento, enquanto cruzava, para aquela desconhecida benfeitora que se ocupou de construir um instrumento de civilização tão fundamental como uma ponte sobre um rio grande em um país médio selvagem e de proveer para que as armazones de madeira fossem consertadas ou renovadas periodicamente. Supôs que deveria ser uma devota do Grande Caminhante, o Deus do Sol, fosse como fosse que lhe chamassem naquela terra, e que aquele signo dinâmico das aspas o deveria representar fazendo seu percurso diário sobre o mundo... a não ser que referisse-se às três fases da lua, imagem do Triplo Deusa.
Ao passar ao outro lado, caminhou para um bosque que se estendia até a orla, onde pensava se dar um banho na intimidem, um pouco separado do caminho comum.
Quando chegou, viu que o rio começava a se curvar em um meandro um pouco mais abaixo e que um grupo de grandes rochas bem pulidas o penetravam, formando um abrigado remanso contra a corrente. Despiu-se e gozou das frescas águas durante um momento, esfregando seu corpo com areia para limpar do pó da viagem e dando uma especial atenção a seus resistentes e sofridos pés. Quando já se tinha secado, vestido e calçado e se dispunha a cruzar o bosque para regressar ao caminho público, se percató de que três ginetes começavam a cruzar galopando a ponte desde o este, seguidos de cães que não paravam de ladrar.
Por se talvez, se resguardó mais entre as árvores para que não o vissem e se manteve atento até poder julgar se podia representar algum perigo a gente que tão ruidosa e velozmente chegava.

Desde onde estava, viu passar ante ele a uma jovem íbera loira de não mais de dezoito ou dezenove anos, vestida com uma curta túnica de couro ensangrentado e armada de arco e de um carjac de setas, os quais lançou à areia da orla dantes de fazer entrar ao cavalo, chapinando, justo no remanso onde ele tinha estado fazia pouco. A garota arrojou-se à água desde sua grupa sem desvestirse.
Sobre seus passos chegou imediatamente outra, de longa cabellera morena, que não parava de rir a gargalhadas e que também deixou cair suas armas de caça à areia para precipitar ao rio desde o alto do cavalo.
A terça, trigueña e algo maior que as anteriores, apareceu levando um cervatillo morto, cruzado sobre a grupa ensangrentada de sua branca yegua e, depois dela, uma jauría de três cães ladradores. De um ágil salto desceu do cavalo, deixou arco e setas no solo e depois atirou da peça caçada até depositar sobre a orla.
Os cães agruparam-se em torno do ciervo e armaram uma grande algarabía, como se ainda estivesse vivo. Enquanto, a garota deu-lhe uma palmada a seu arreio para convidarla a meter no água, refrescarse e limpar-se o sangue da presa que tinha portado. Ela também ia toda manchada, com o sangue escurriéndole em regueros acima dos muslos e, rindo para as outras duas, que se arrojavam água à cara como duas crianças, se meteu no rio em direção a elas, tiñéndolo de vermelho em seu meio.
Estiveram jogando juntas na água, formando um quadro encantador de juventude, solta alegria e beleza, gritando em sua língua e rindo continuamente. Depois limparam o que puderam à yegua e elas mesmas se esfregaram mutuamente as curtas túnicas de couro com as mãos.
Depois tiraram-lhas, ficando totalmente nuas; lavaram melhor suas roupas sobre as pedras e escurrieron bem a água, se ajudando entre duas a retorcerlas, depois do qual voltaram à orla para estender ao sol sobre as copas de uns matojos baixos. Orfeo sentiu-se privilegiado desde seu esconderijo, porque fazia muito tempo que não via a uma mulher daquela maneira e estas três jovens pareciam as Três Obrigado e todo era firme, esbelto e flexível nelas.
Mas, quando mais fascinado estava com sua visão, a amazona do cabelo negro, que estava de costas a ele, se voltou e deixo a sua vista a mata escura, espessa, animal e selvagem de seu pubis, o que produziu uma funda conmoción no bardo.
Já que pára Orfeo, acostumado às mulheres civilizadas que se depilaban completamente até que seus sexos pareciam sexos de chiquillas, a visão daquela rústica maraña negra entre uns muslos e caderas turgentes, ainda não limpos do tudo do sangue do gamo, apesar da água que escurría em gotas sobre sua pele, lhe recordou imediatamente que se encontrava em uma terra bárbara, grosseira, brutal e muito guerreira onde, se mudava de repente a direção da brisa e os três cães, ainda ocupados com a presa ou bebendo no rio, chegavam a captar seu cheiro e ladrarle, aquelas rústicas beldades, ao descobrir que estavam sendo espiadas por um homem maior que elas, bem podiam os lançar contra ele, como lhe ocorreu ao desgraçado Acteón quando surpreendeu nua em seu banho à deusa Artemisa quem, furiosa, o converteu imediatamente em ciervo e o fez despedaçar por sua jauría.
De modo que, com o maior sigilo possível, afastou-se rapidamente do lugar e correu até o Caminho das Estrelas. Já longe do rio, se meteu bosque adentro e não retomou sua marcha até que, um momento depois, pôde ouvir os ladridos dos cães passando pelo caminho em direção ao oeste, detrás, seguramente, das três belezas montadas cujos corpos tinham ficado gravados em sua memória. Surpreendeu-se do terrivelmente excitado que estava e da força do instinto animal que ainda residia nele. Durante longo tempo praticou exercícios mentais de acalmamiento e de apagamiento das imagens morbosas que continuamente lhe assaltavam.

Parecia-lhe incrível como ele, um fino artista, podia passar rapidamente, do aprecio estético das belas formas de umas jovens, algo não muito diferente do que significa contemplar uma formosa paisagem, à parte mais bestial e titánica de sua subconsciente, algo que lhe levava a incorporar obsessivamente identidades ultrapassadas e indeseables que muito tinham que ver com impulsos violentos, e brutais, inclusive assassinos, que estimulavam seus corpos mais densos por muito que repugnassem a sua consciência ética.

Percebeu então claramente que sua sensibilidade estética e sua intelecto não constituíam partes do mental superior, como até agora tinha crido, senão corpos-ponte entre suas energias mais animais e as da alma, ainda muito carregados de materialidad e pouco confiáveis, se é que de uma maneira tão fácil podiam abrir a ombreira da consciência aos monstros que povoavam o astral mais inferior do homem desde épocas arcaicas.

Tentou esquecer aquelas imagens turbadoras, substituindo sua lembrança pelo da própria Eurídice bañándose em uma fonte de Tracia após fazer o amor, enquanto Orfeo, agradecido e sentindo ainda o aletear do prazer sobre sua pele, a homenageava desde a erva, rasgueando sua lira em armónicos curvos e sinuosos como suas formas. Mas não pôde evitar que a imagem intrusa daquela mata púbica ibérica, obscena, escura e selvagem, se superpusiera um par de vezes à do civilizado e nu sexo de sua amada, pelo que pediu desculpas mentalmente a seu espírito.

Então, fechou sua mente a qualquer imagem erótica, inclusive as do corpo de Eurídice, e dedicou-se a amar tão só o casto lembrança de seu rosto e seu sorriso. Não serviu de nada, uma parte instintiva e morbosa de si seguia profanando a presença mental de sua amada com indignas inmundicias.
Desejou voltar a encontrar uma corrente de água bem fia na que se submergir, oxalá uma cascata baixo a que lavar sua cabeça.
Mas não tinha nenhuma corrente por perto, de modo que focalizó as imagens de majestuosa pureza do aspecto Donzela da Deusa, aquelas com que os gregos tinham pintado e esculpido a Artemis, a virgen caçadora dos bosques e as cascatas, e lhe ofereceu a realidade interna do mais denso que portava, junto com sua aspiração a ser digno dela, lhe pedindo humildemente que lhe perdoasse e lhe limpasse.

Aquelas imagens pesadas desapareceram imediatamente ante a luz que emanaba da mais Sagrada Energia Feminina dentro da mente de Orfeo, quem agradeceu cantando seus hinos até que se sentiu perfeitamente leve e libertado.


Seguiu o caminho sem mais encontros dignos de menção, por um país onde as mulheres dominavam os lares tanto como em Tracia, onde “um homem é sempre um visitante em sua própria casa”, que pela manhã é expulsado a realizar os labores externos de seu sexo, enquanto as mulheres iniciam suas próprias lidas internas.
Um entardecer, em uma aldeia chamada algo bem como Solovio, a dona de uma casa à que se acolheu, uma mujerona que dirigia a média dúzia de homens de todas as idades, lhe disse, depois de lhe servir uma sustanciosa jantar, que o sol desaparecia no oceano a só uns quatro dias de caminho, mais ou menos. Orfeo sentiu uma onda interior excitando seu coração, o Reino Infernal de Hades estava próximo.

Essa noite quase não pôde dormir, lha passou recordando os conhecimentos aprendidos de seu maestro Quirón, as fórmulas mágicas para vencer obstáculos no Mundo da Morte que se ensinavam nas escolas iniciais de Samotracia e Eleusis, adaptações egeas do Livro dos Mortos com o que viu que enterravam à gente no Egito... e também as instruções de Hércules sobre o Para além. Meditou e meditou sobre como lhas arranjar para penetrar no Escuro e resgatar a sua amada. Chegou à conclusão de que algo tinha que morrer nele, já que só os mortos são aceitados na Outra Dimensão.
De modo que, à manhã seguinte, despediu-se de seus anfitriões e começou sua marcha orientando-se, como lhe indicaram, por uma corrente de bicos arrematados por enormes penhascos de granito e cuarzo que se dirigiam deste a oeste, a sua esquerda, mas tratando de avançar pelo centro do vale. O último era um monte piramidal e frondoso que ocupava em solitário o horizonte e que estava dedicado a Cosus porque (tinham dito os camponeses), quando descargaba uma tormenta, sua mole atraía a maior parte dos raios. Pouco depois, caminhava pelo centro de um vale muito amplo, ondulado por numerosas colinas, com um rio e bosques bem espesos. Uns pesados nubarrones negros indicavam que cedo começaria a llover. Então divisou umas construções ao longe e apressou-se para elas.
Quando chegou, diluviaba, mas mal achou para guarecerse as ruínas de um caserío abandonado fazia tempo e queimado, como se a guerra mais inclemente e destructiva tivesse passado por ele. Não bem a chuva cessou, quis sair daquele desgraçado lugar, mas de repente se encontrou no meio de um cemitério neblinoso.
Sua inspiração de artista avisou-lhe de que tinha topado com o lugar adequado para pôr em prática o meditado a noite anterior. Orfeo despojou-se da maioria de suas roupas e, ajoelhando sobre a terra úmida, a despejó de folhas morridas e cavou um buraco superficial com uma espada ibérica de folha curvilínea, que Aito lhe tinha presenteado. Deitando-se nele, se cobriu o melhor que pôde de terra e folhas, deixando tão só a cabeça afora. Depois, começou a entoar um canto fúnebre dedicado a si mesmo.
Assim passou todo o dia, quase sem se mover, sem comer nem beber e tratando de não se dormir, concentrado naquela salmodia repetitiva, que ia pouco a pouco apartando ou diluyendo qualquer corrente de pensamentos que se apresentava ante sua mente. Reduziu ao mínimo sua respiração, esforçou-se tenazmente em não aceitar distração alguma e, quando aquele exercício lhe esgotava, fechava os olhos por curto momento sem se permitir dormir. Assim que as correntes de pensamentos ou imagens assaltavam-lhe, voltava-os a abrir e continuava repetindo machaconamente a salmodia, sempre no mesmo tom. Quirón tinha-lhe ensinado aquela disciplina ritual para quando precisasse deter seu discurso automático habitual, a fim de que os deuses lhe assinalassem e aconselhassem o caminho e a estratégia a seguir. Chamava-se “a Busca da Visão”.
Quando entardecia, estava tão fatigado que uma das vezes que fechou os olhos, lhe resultou impossível seguir se mantendo acordo.


Sonhou que caminhava pelo mesmo vale neblinoso onde tinha entrado pela manhã, aquele que tinha um bico solitário em forma de pirámide ao fundo e muitos bosques, robles vetustos do norte, com longas barbas de líquenes, emergentes de um mar de helechos exuberantes, rodeados de um canturreo de ribeiros que discurrían suavemente entre a erva, de sons contínuos de grillos e ranas, de uma umidade perenne. Mas agora estava anocheciendo, ainda que alguns celajes vermelhos no horizonte montanhoso davam depoimento do passado ocaso. Quando quase não ficava mais luz, um resplendor súbito surgiu do bosque, ante ele e depois outro e outro.
Meteu-se com prudência entre a tupida arboleda e foi-se acercando; de um amplo claro entre os robles saíam luzes. Acercou-se mais: era como se brotassem estrelas ou luciérnagas do solo, que se elevavam, resplandecían um momento e desapareciam.
Chegou ainda mais perto e lhe pareceu como se as lucecillas se organizassem de repente em um movimento circular, formando um óvalo vertical sobre o espaço, tal como uma porta feita de luminarias.

Sem saber como, se encontrou adentro, absorvido por um túnel de luz a velocidade vertiginosa. Formas e cores inconcretos iam passando ante ele, sendo rapidamente deixados atrás e substituídos por outros. No entanto, não sentia que estava caindo, era mais bem como se flutuasse e não tinha nenhuma sensação de insegurança, apesar da tremenda emoção com a que estava vivendo aquela experiência.
Em um momento dado, baixo ele, as imagens começaram a se concretizar algo mais e lhe pareceu que voava sobre correntes de velhas montanhas, coroadas às vezes de grandes moles de granito resplandecientes, sobresaliendo de frondosas arboledas. Mas as cores pouco tinham de naturais, mais bem semejaban estar incendiados, intensificados por uma luz espectral que produzia grandes contrastes. O silêncio em torno era absoluto, quase obsesionante.
As correntes de montanhas converteram-se em cabos intermináveis que se adentraban em um oceano escuro, bordeado de calas rocosas alternadas com longas praias de areia branca e suave sobre as que rodavam as ondas mais bravas e tormentosas que nunca visse. Ao fundo, na negrura, adivinhavam-se islotes ou ilhas. Várias bandadas de aves marinhas foram-se cruzando com ele de vez em quando, vindo da direção oposta; ao passar a seu lado gritavam ou graznaban e esses eram os únicos sons que seguiam se ouvindo.
De repente, encontrou-se caminhando sobre uma enorme praia solitária, orlada de selvagens redemoinhos de espuma que se derramavam silenciosamente sobre a orla, percorriam um grande trecho sobre ela e depois se retiravam bem longe, em umas marés descomunales, para voltar a cair de novo sobre a areia como um maremoto surdo e mudo que quisesse se engolir todo mundo visível, ainda que sempre se recolhia dantes.
Ao final da praia tinha um alto monte, percorrido de acima abaixo por caminhos espirales, bordeado a sua esquerda por abruptos alcantilados que caíam sobre o mar e sobre uma grande rocha que parecia a unha de pedra de um enorme titán submergido no abismo que estivesse rascando as paredes dos alcantilados e deixando nelas terríveis hendiduras verticais que se tinham convertido em morada de innúmeras aves marinhas que por bandadas se posavam... Ante a unha, se apelotonaban rochas mais baixas, restos de derrubes, que chegavam até a praia das ondas furiosas.

Uma figura sobre uma das rochas do final da praia, sentada imóvel, chamou sua atenção e foi-se chegando até ela. À medida que acercava-se foi-a sentindo como mais e mais familiar... de súbito seu coração deu um viro Eurídice! E jogou a correr em sua direção.

Seus olhos fundiam-se com ela muito dantes de chegar, mas sua esposa não parecia lhe ver. Ali estava, formosa como sempre, juvenil, vestida com uma longa túnica branca que contrastava com seu manto, de um violeta ignição, estranho, como todas as cores daquela paisagem. Olhava para o mar, atrás dele e não dava a menor mostra de lhe reconhecer.
Orfeo gritou seu nome com júbilo e precipitou-se a abraçá-la, mas seus braços atravessaram-na como se atravessa um espejismo. Ela estava ali, mas nem o percebia, ela era mal uma sombra nítida, ou talvez o fosse ele, se encontravam juntos, mas em mundos diferentes; ele a via, mas ela não, nem podia o escutar.
Sua alegria converteu-se em uma terrível angústia. Sentou-se aos pés de Eurídice e começou a chorar como não tinha chorado desde menino. Suas mãos morriam-se por acariciá-la, mas só atingiam a calcar no ar os contornos visuais de uma imagem vazia de consistência.
Descobriu sua própria figura no espelho de um charco de água, ao pé da rocha, e estranhou-se de ver-se tão velho, comparado com a juventude quase adolescente de Eurídice... Tantos anos tinham decorrido buscando-a...? No entanto a bela imagem de sua amada não aparecia refletida no charco, só a dele, com seus braços e mãos febriles acariciando o ar.
Orfeo, com tudo, se pôs a lhe falar e a lhe falar entre sollozos, lhe contou como tinha viajado obstinadamente ao outro extremo do mundo para a buscar, recordou, com as palavras mais ternas, a cada momento que tinham compartilhado juntos desde que se conhecessem, lhe falou dos amigos e parentes, lhe repetiu mil vezes quanto a amava, lhe cantou baixinho com doçura as canções mais íntimas que tinha composto para ela e, enquanto, não parava de acariciar nem besar ilusoriamente os contornos vazios de sua imagem impalpable e ausente.

Ao cabo de um momento, ela se levantou, se acomodou o manto sobre os ombros e baixou da rocha através dele, começando a ascender, pouco a pouco, por um caminho que contorneaba o borde do cabo, entre matas de picudos espinos verdes, por trás do alcantilado, onde anidaban centos de gaviotas que não se intranquilizaban por seu passo.
Ele tratou da seguir (e desta vez sim que as gaviotas, assustadas, alçaram o vôo em grandes bandadas e gritando) e se encontrou com um terreno tão difícil, embarrancado e perigoso que forçadamente se foi ficando atrás.
A sua esquerda via, abaixo, aquela grande unha de pedra encaixada entre altísimas estrías verticais, hendiduras da montanha cortadas a bico, que conformavam uma paisagem surpreendente e siniestro; qualquer passo em falso poderia fazer-lhe rodar para o abismo. Eurídice, no entanto, nem olhava onde punha os pés, como se flutuasse sobre o solo.
Sua amada dirigia-se, sem aparente esforço, para as alturas do alcantilado, onde séculos de tempestades tinham acabado esculpiendo nas rochas todo um exército de siluetas fantasmagóricas. De súbito, apareceu entre elas uma longa fila de figuras humanas. A cada uma delas portava uma luz e mais que caminhar, pareciam deslizar pelo ar. Eurídice simplesmente deixou que passassem ante ela e depois ocupou o último lugar na fila.
Nesse momento, foi como se uma luz se acendesse dentro dela e como se sua figura se fizesse mais subtil e transparente. Sim, todos e a cada um eram luzes mortecinas, algo verdosas, envolvidas por uma vadia aparência individualizada. A procissão começou a descer para o mar barranco abaixo e Orfeo correu com todas suas forças, se jogando a vida no borde traicionero daqueles abismos que davam vertigem, para não perder de vista o lugar a onde se dirigiam.
Contorneó um dos altos farallones que caíam sobre a Unha de Pedra e se encontrou no alto de um precipício, assomado a um saliente rocoso que não lhe permitia avançar mais sem perigo de cair. As figuras luminosas do final da fila estavam penetrando na gigantesca boca vertical de uma gruta ou grieta que tinha ao sul da Unha, gruta aparentemente furada pelo mar no alcantilado. Para chegar até ali desde onde ele estava, só arrojando ao abismo e conseguindo voar. Ficou olhando como Eurídice flutuava sobre o ar, semelhante a uma luciérnaga, seguindo a seus colegas, com o mar rugiente estrellándose contra o pé da gruta, baixo eles, até que a escuridão da grieta se engoliu seus últimos fulgores.
Então ouviu algo bem como uns lamentos a suas costas e voltou a rodear para o norte o farallón com a esperança de que reapareciera por ali sua mulher, mas só viu duas novas filas de flotantes fantasmas, que baixavam, convergiendo, desde o alto das cristas do alcantilado, para outra gruta, quase a ras de água, que parecia ter a este outro lado da Unha de Pedra. As novas figuras não tinham um aspecto tão sereno como aquelas às que se tinha unido Eurídice, sua luz interior era bem mais amarillenta e apagada e pareciam ir encolhidas, dolientes e temerosas, se destacando os lastimeros ayes de muitos.
Orfeo, no entanto, só queria recuperar a vista de Eurídice, voltar a estar com ela, de modo que lhes gritou e lhes fez senhas suplicando:
-Levem-me convosco! Faz favor, levem-me adentro convosco!
Mas não lhe fizeram caso e seguiram passando pelo ar ante ele, até introduzir na gruta, lá abaixo, totalmente fosse do alcance de Orfeo. A última figura, dantes de perder-se, voltou para ele a cabeça e gritou algo bem como:
-Falta-te o laberinto!
Orfeo seguiu suplicando aos da segunda fila e obteve a mesma resposta dos últimos:
-Percorre o laberinto até o final! Arremata o laberinto!
No alto das cristas, sobre a alongada grieta que acabava na gruta, se destacava uma figura natural de rocha que, de repente, lhe pareceu uma esfinge ou uma serpente alada com cabeça de mulher. Também aquela misteriosa figura, que lhe recordou à maga colquídea Llilith, assassina de Eurídice, pareceu cobrar vida por um momento para lhe dizer:
-Percorre até o final teu laberinto!
Foi mal um segundo, como uma alucinación ou um espejismo, e depois voltou a se converter em uma clara rocha erosionada pelos ventos.
Ficou só enquanto entardecia, ante um silêncio angustioso. Entrar no ventre da montanha por aquele oco parecia mais factible que pelo outro, vertical sobre o abismo, por onde tinha penetrado Eurídice, já que o barranco parecia descer até o mar em uma inclinada pendente orlada de arbustos baixos aos que talvez poderia se agarrar.
Já começava a descolgarse do saliente para as malezas, quando de repente, ouviu um sonoro aletear e viu como saía da gruta uma enorme bandada de aves marinhas que voava direta para o flameante horizonte do mar, para além daquela ponta do cabo em forma de navio.
As aves converteram-se em figuras humanas resplandecientes que flutuavam no ar conduzidas por belas sirenas aladas que foram passando ante ele em direção ao sol poente. Pôde reconhecer entre elas a de Aito, a de Turos, Bodo e alguns outros dos guerreiros andantes Brigmil que lhe tinham salvado e acompanhado na montanha da Cruz de Ferro. Gritou seus nomes e também lhes pediu que lhe ajudassem a penetrar nos Infernos, mas só a mesma resposta obteve enquanto se afastavam, voltando a se converter em pássaros:
-Força, Orfeo! Percorre até o final teu laberinto!

A bandada de aves humanas rebasó o cabo da nave e, desde ali, foi descrevendo um amplo giro para o sul, empequeñeciéndose ante sua vista até perder-se entre os brumosos contrastes do céu. Orfeo caiu então na conta de que seus amigos Brigmil deveriam ter morrido, como Eurídice, talvez caminho da Ilha do Destino ou em sua invasão e que por isso podiam cruzar os portões do abismo. Ocorreu-se-lhe de repente que era melhor estar morrido e com sua amada, que permanecer no tormento daquela angustiosa carência.
Tentando baixar para a gruta como fosse, saltou desesperado para um grupo de malvas arbóreas que tinha embaixo e conseguiu se agarrar a uma delas, mas se lhe desprendeu de raiz e rodou com ela pela inclinada pendente, chocando, se golpeando e se ferindo muito dolorosamente várias vezes. No entanto, seus frenéticos tentativas de ir agarrando-se ao que podia amorteceram sua queda. Acabou sendo detido por um grupo de armerias marinhas cujos tallos mullidos, milagrosamente, agüentaram seu peso, e salvou-se por quase nada de ir de cabeça ao abismo. Sentia seu corpo totalmente magullado, tendo perdido a lira e o zurrón e brotando abundante sangue por seu joelho, que estava em carne viva e lhe doía muito.
Lentamente, conseguiu sair de ali, arrastando-se, e foi baixando pouco a pouco até o mar que entrava e saía da base da grieta. Já estava anocheciendo quando conseguiu fazer pé sobre ela e lavou como pôde suas feridas.
A pouca altura sobre o nível das ondas que penetravam por trás da Unha de Pedra no alcantilado, se abria uma das siniestras bocas do Averno, o que para ele era um triunfo longamente buscado, que lhe enchia de emoção e de júbilo, apesar de seu desastroso estado físico. Mas, quando Orfeo quis entrar, lhe saiu ao passo, dentre as sombras, tal como se as rochas lhe tivessem dado forma, uma figura gigantesca e horrível, algo bem como um negro gigante de anchísimo tórax, coroado por três cabeças de lobo, a cada uma delas defendida por um colar de aceradas púas sobresalientes.
Aquela besta de pesadelo rompeu o omnipresente silêncio com um triplo rugido que ressoou pavoroso em toda a gruta, mas Orfeo não podia achar que aquilo fosse real. Provou a avançar e a atravessá-la, tal como tinha atravessado o corpo de Eurídice, mas recebeu uma dentellada selvagem em um braço, que lhe fez gritar de dor e se arrojar para atrás enquanto continha o sangue de sua ferida.
O monstro voltou a acossá-lo, Orfeo gritou o nome de Eurídice várias vezes, mas só conseguiu uma segunda terrível mordida do guardião das sombras e zarpazos como de chumbo no peito e a cabeça e uma terça no outro braço. Viu-se obrigado a ir recuando, ante seu incontenible empurre, para o lugar por onde tinha entrado.

De repente, encontrou-se de novo junto ao mar, sangrando a chorros por ambos braços, com suas sensíveis mãos rasgadas, quase feitas pedaços, e com profundas feridas no peito e na cara. A porta da caverna via-se como cegada por penhascos. Orfeo gritou e gritou ante ela, mas acabou desplomándose sobre o borde das rochas, debilitado pela perda de sangue. Desejou morrer para reunir-se por fim com Eurídice, já que Hades recusava de tal maneira aos vivos em seu reino. Foi sentindo como se fundia com a úmida pedra, molécula a molécula pesadamente, enquanto as suas veias se esvaziavam. Foi percebendo, impotente, como o pesado sonho da matéria inerte se apoderava por completo de sua consciência.


Acordou naquele cemitério próximo a Solovio, quando os passos leves da aurora abriam portas de clareza entre o nevoeiro das tétricas ruínas circundantes.
Levantou-se do buraco e apalpou e examinou com cuidado todo seu corpo, mas não tinha nem sinal, felizmente, das horríveis feridas que tinha recebido em seu pesadelo da noite anterior. Jogou-se de novo, se relajó e ficou longo momento recordando o sonhado, resgatando a cada possível memória disso, reordenándolo, o repetindo e o repetindo com a imaginación até que o teve claro e completo em seu poder, como Quirón lhe tinha ensinado: “O primeiro ao acordar, trata de agarrar com nitidez as imagens de teu sonho, repete-as, grava-as. Já terás mais tarde tempo para as analisar”
Agora era esse tempo. Tinha visto a Eurídice, tinha visto o lugar onde estava, um lugar junto ao mar, rocoso, a Unha de Pedra, um abismo, duas grutas, um monstro.
Tinha visto uma procissão de espectros, uns que entravam, outros que saíam, os Brigmil, os Brigmil lhe animando a ser forte, a percorrer um laberinto. Os Brigmil voando na procissão dos mortos...
Ficou muito preocupado por seus amigos, os guerreiros livres... Lhes teria ocorrido algo? Fazia relativamente pouco que se tinham despedido para embarcar em Brigantia em suas três naves exploradoras e buscar para o Norte a Ilha Sagrada do Destino... Um sonho premonitorio? Ou …seus próprios remordimientos por não se ter ido com eles?…Lhes teriam afundado as tempestades do Oceano?

Respirou profundo, relajándose e tratando de apartar a ansiedade e o temor por quem queria e de fazer um vazio em sua mente para que chegasse a ela a inspiração.
Contendo o ar, pôs-se em alvo, manteve-se. Soltou. Chegou sozinha a primeira imagem a sua mente: a procissão alada dos Brigmil saindo da gruta para o mar e resplandeciendo. A segunda: Eurídice na fila que entrava na gruta com um brilho verdoso, muito menos intenso. A terça: As outras duas fileiras de espíritos claramente apesadumbrados que se cruzavam, vindo de acima e que entravam na segunda gruta, do outro lado da grande Unha de Pedra.
Apesadumbrados, com luzes amarillentas, apagadas. Uns entrando à gruta, outros saindo. Três tipos de luminosidade: baixa, média, alta. Eurídice média, entrando, os Brigmil resplandeciendo e saindo da gruta. Orfeo tranqüilizou-se por Aito e seus homens; ocorresse o que ocorresse com eles, o sentia positivo. O mau agora era Eurídice. Eurídice não estava bem onde estivesse. Eurídice precisava-o, tinha que ir lá, sacar da gruta. Levantou-se de novo, deu-se um banho em um ribeiro, vestiu suas roupas, recolheu sua bagagem e orientou-se para o Oeste.


No entanto, quando se pôs a andar, reconheceu ao pouco, ante sim, o bosque de robles do que tinham saído luminarias e, entrando nele, achou o claro onde as estrelas móveis tinham desenhado para ele a porta de seu sonho. Era um lugar real. Talvez estava ali mesmo a porta da outra dimensão.
Sentou-se em médio no dia inteiro, repetindo seu salmodia fúnebre, rogando aos deuses que lho levassem com Eurídice, ainda que só fosse em uma curta visão. Passou uma jornada mais sem comer nem beber, acabando-a esgotado e dormido sobre o solo.
Mas acordou-o outro amanhecer neblinoso e não tinha lembrança de sonho algum em sua memória, de modo que voltou a se sentar, a salmodiar, a rezar e a ayunar. Ainda que nada ocorria. E todo o dia decorreu e outra noite sem sonhos que recordar. E em um novo dia chegou, desta vez sem nevoeiro e com muitos cantos de pássaros entre as copas das árvores, irradiando sua luz gloriosamente, refletindo-a na cada gotita de orvalho da cada helecho ou a cada erva.
Orfeo, decepcionado, decidiu abandonar aquele lugar e continuar para Occidente, mas dantes de pôr-se em marcha cantou com sua flauta para si mesmo toda a tristeza e melancolia que sentia.

Aquele lugar de seu sonho teria de ser chamado, séculos atrás, Campo das Estrelas ou Compostela e, apesar de ter-se povoado e animado bastante, continua sendo neblinoso, úmido, melancólico e misterioso.



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